[A Rua do Fim do Mundo]

[Eu li o Eclesiastes - sei que narro o óbvio, mas a minha maneira!]

Num certo dia de junho, tinha chovido na noite anterior, e sobre as pedras lavadas da rua vazia, pairava ainda a friagem úmida do ar da manhã. No Planalto Central, era tempo de ventos frios, de hortaliças requeimadas, de nariz instilando, como dizia a minha mãe; ah, e de gemada de alfavacão, quentinha, quentinha, tomada junto ao fogão de lenha! Numa manhã como essa, eu nem queria olhar para o fundo do quintal solitário, penumbroso, deserto, árvores gotejantes ainda, animais entanguidos à espera do sol ganhar alguma quentura... No quintal, reinavam o escuro e o úmido. E ali, passado o inverno, as coisas germinariam a seu devido tempo; previdente, o quintal guardava a umidade para o depois; o quintal era um ventre capaz de mistérios... agora, nesse estado, o melhor era a gente menino nem reinar nele!

Para escapar à gastura da visão do quintal, eu tinha era de sair à rua. Eu precisava do aberto! Não importava o frio; a novidade do muro de taipa caído durante a noite, um estrondo surdo que me fez pensar no fim do mundo; o paletó de flanela rala que não segurava o vento; o padeiro atrasado justamente numa manhã como essa — nada importava — eu comia restos do pão de ontem, e saía assim mesmo como estava, descalço, pés esparramados no chão. Caminhava a esmo pelas pedras frias da rua, esperando que o sol trouxesse algum calor. Saía para respirar no aberto. Na rua, nada, ninguém — só eu só, caminhando, os meus olhos curiosos interrogando as grandes pálpebras adormecidas, as janelas e portas das casas ainda silenciosas. Vez enquanto, eu soprava a concha das mãos para esquentá-las com o meu hálito de café com leite. Na rua, eu me olhava, eu me tocava, eu sentia os meus pés nas pedras, e então, eu me paria novinho, novinho, mas sem chorar, para o aberto da rua do mundo: eu havia escapulido daquele ventre escuro, úmido...

Ah, eu não tinha nada, nem calçados, mas um poder eu tinha: eu podia sonhar, e eu tinha a rua toda! A rua era larga, era comprida até perder de vista - a rua era o mundo, eu pensava; então, eu posso andar pelo mundo até me cansar. Só brigava mesmo comigo por causa do vazio — um mundo oco, que não aponta sentidos, rumos, e se oferece, assim, bestamente, nos abertos de uma rua sem fim, de que serve? Para que serve estar no mundo? Mas eu reagia: ah, mas o mundo é o mundo, querendo ou não, ele está aí, e não fui eu quem o fez assim, ara! E me tomava de bravatear: eu sou eu; sim, eu, um menino já com essa capacidade para sofrer com o vazio da rua do mundo, um menino pensativo, de pés no chão frio — eu vou é para o fim do mundo, eu abro caminho, e assim, quero ver, quero ver! — ara... do mundo, eu faço o sentido que eu quiser!

Ao longe, tão longe de tudo perder o peso e ficar pequeno, eu via o céu topar com o alto da rua do mundo: e então, eu olhei meus pés, e 'maginei comigo mesmo: que coisa, até que é fácil... viver é só isso, é só caminhar, e caminhar sem perguntar por quê! A minha análise de menino: eu vim do nada, eu era um pontinho lá atrás... caminhei, caminhei, caminhei, passei pelos meus próprios olhos, com espanto, e tomei vulto de gente... e agora, vou caminhar, caminhar, caminhar até sumir de vez naquele alto dessa baita rua do mundo... lá no fim, no encontro de céu e terra, eu viro nada, e passo fazer parte do vazio, do vento — então, o vazio do mundo está mesmo é em mim! Ara, menino pensa cada coisa!

E foi assim que eu vi que não tinha cabimento eu ficar puxando a saia da minha mãe, e azucrinando a paciência dela: "mãe, mãe, se é pra morrer, então, pra que nascer?!"

[E olha só: eu nem tive intenção de nada, de falar nada... se for ver bem, cadê a competência, o talento para falar alguma coisa que preste?!]

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[Penas do Desterro, 30 de junho de 2008]