[Capturas do Tempo: Os meus Chinelos de Desenganado]
As emoções fáceis são as que mais atraem a atenção das pessoas, haja vista o sucesso de alguns filmes e novelas da TV, e da literatura de banalidades como o misticismo, a auto-ajuda. Despejadas assim, estas palavras careceriam de alguma justificativa, no mínimo, uma ponderação sobre o que eu entendo por "fácil". Mas não farei nada disto! Já que tantas coisas inefáveis latejam sob a superfície crespa da linguagem, que o leitor cumpra sua missão de cavoucar sentidos! Apenas ressalto que, justamente por serem fáceis, estas emoções têm curta permanência na memória — fragmentos de fragmentos, é tudo o que resta depois de algum tempo, pouco tempo, por sinal.
Quero apenas relatar mui brevemente a emoção "fácil" que eu senti ao adquirir os meus "chinelos de desenganado" — aqui, faço caso de explicar — tendo despertado de um sono de cinqüenta anos, pensei na sorte que teve o meu pai, de morrer, subitamente, aos 27 anos de idade — seu corpo não conheceu a decadência! Tal não se deu comigo... eu assisto, lúcido, o fim se aproximar, olho as partes do meu corpo, e sinto a cadência!
Exemplificando como essa cadência é marcada por emoções fáceis: aprendi a montar antes de aprender a andar — criança de colo ainda, eu já sentia, de pertinho, o cheiro do cavalo e o do gado. A minha primeira lembrança não é o cheiro do peito e do leite materno... mas é o cheiro do gado! Ah, sim, a tal da cadência... há décadas não monto cavalos... como seria hoje, lançar-me num galope à toda, montado em pêlo, sem arreios, sem freios, sob uma tempestade ribombante, raios caindo nas árvores próximas, e de rosto colado à tábua do pescoço do animal? Nem pensar numa coisa dessas — ossos partidos, cabeça quebrada, na acerta! Eta emoção fácil, hein?! Mas dessa, não me esqueço jamais; volta-me constantemente, até em sonhos!
Vou falando solturas assim, sem rumo... minha cabeça é de velho, é assim mesmo, volteia nos assuntos. E os tais chinelos de desenganado? Conto para encerrar essa questãozinha à-toa. Como eu disse, ao despertar, depois de 50 anos de sono, ou de sonho, tanto faz com tanto fez, eu vi o fim. Mas então, imaginei um fim assim, lento, programado, projetado, como ficaria bem a um cientista como eu, acostumado à disciplina da Física e da Matemática. A primeira coisa que pensei não foi em seguro de vida, propriedades, nada disso; até por que a minha inabilidade para viver segundo a práxis do mundo fez de mim um pobretão. Pensei logo num lugar para morrer, um hospital. E para entrar no hospital onde eu vou morrer, eu precisava de um bom par de chinelos, palmilha de couro, aliás, todinho em couro, chinelo de calçar apenas enfiando o pé, sem tiras, fivelas, etc, — enfiou o pé, calçou!
Fui a uma loja: comprei um par de sapatos e, já de caso pensado, comprei também os tais chinelos de desenganado! Foi só então que me dei conta dessa palavra: desenganado... mas desenganado por quê, se a morte me foi apresentada aos 4 ou 5 anos de idade, por minha própria mãe?! Nunca estive enganado não... não com a certeza e a presença da morte a cada passo meu! E pra falar a verdade, tenho um olhar tão esquisito pra essas coisas de doença, morte que os médicos mal falam comigo, portanto, não haveria médico algum a me “desenganar” — absurdo! Mas, se é essa a expressão que se usa, paciência: adotei-a prontamente, comprei os meus chinelos de desenganado! Na hora, a emoção veio fácil, fácil... Senti um frio na espinha, vi os corredores do hospital, vi-me, de pijamas, arrastando aqueles chinelos por um extenso corredor. Sempre detestei pijamas, na posse de minhas forças, não uso de jeito nenhum, e se me derem, jogo fora; mas na hora da morte, a família ou os circunstantes, acham de vestir pijamas na gente — por mim, usaria calças de algodão de tear, camisa de algodão cru, feita de pano de saco branco. Tentei usar os chinelos algumas vezes, mas desisti — guardei-os para a finalidade planejada, de ser um detalhe a circunstanciar a minha morte, quem sabe até mesmo servir de objeto para um menino demorar nele o seu olhar — que ninguém me frustre esse projeto!
Aqueles chinelos estão guardados no meu armário de roupas, há uns 6 ou 7 anos. Não minto não: quem me conhece bem, até já viu os meus chinelos de desenganado... foi uma emoção fácil comprar estes chinelos... portanto, já me esqueci da loja, do lugar, do vendedor, do preço... e que me perdoe a pessoa que estava comigo na hora da compra, se não menciono aqui o seu nome!
Ah... simples registro: foi também uma emoção bastante singela ver um certo tradutor de Gabriel Garcia Marquez usa essa mesma expressão que eu, chinelos de desenganado, no livro “O Outono do Patriarca”; como estará dito nas próprias palavras de Garcia Marquez? Agora fico a pensar... ô diacho, e eu que pensava que tinha tido uma idéia original! Juro, mas juro mesmo que eu nunca tinha visto essa expressão, tudo que me lembro é de ter fixado o meu olhar nos chinelos do meu tio Alberto, que passou uns dias na minha casa, no chalé amarelo, quando ele estava para morrer! Quem olha além da conta, se não fica de testemunha, paga o preço pelo registro na memória! Cada um, cada um; e cada um sabe de si, ara!
E afinal: eu não disse nada, apenas falei de uma emoção fácil, e portanto, você que me leu até aqui, já terá dela se esquecido! Good bye, emoção fácil!
[Penas do Desterro, 21 de junho de 2008]