Tema de camafeu

TEMA DE CAMAFEU

Para Sandra Mara F.

Ela está de três quartos de perfil, os lábios vermelhos entreabertos exibem a brancura dos dentes. O cabelo escuro modela o crânio delicado. Da orelha esquerda, riscada por fios de cabelo, pendem três pequenas esferas brancas de um pingente preso à orelha por uma diminuta circunferência, também branca. A blusa azul descobre o ombro mais próximo do espectador. O mesmo corte desenha uma diagonal displiscente abaixo do outro ombro, a cor da pele é morna e pálida, contrasta com o fundo cinzento; a figura de recorta sobre esse fundo liso. O brilho dos olhos amplia o sorriso.

Se fosse um retrato renascentista, uma paisagem bucólica ocuparia o fundo, a moldura criaria a ilusão de janela, neste caso, o mar e a praia deveriam vazar a fortaleza.

Suas mãos não aparecem. Agrada-me esta omissão pois deixa que as imagine: dedos finos, nacarados, as unhas, ovais pérolas rubras. Percebo que isto é sugerido para contrastar com a cor da blusa. Talvez a ausência das mãos seja um recurso do fotógrafo - e do modelo - para forçar o observador a inventá-las em movimento, atarefadas em trabaalhos diversos (ela exerce algum profissãao ou é Penélope?) ou inertes na pausa de um verso ou de uma peça de alaúde, à maneira das odaliscas. Sobriedade: sutileza do estilo.

Descrevo a imagem como ela se conserva na memória. Deste modo se realiza o milagre da lembrança, algo que não mais está na retina e no entanto vive com nitidez plena, presença imanente, sem arestas, sem contornos rígidos de realidade concreta. Dizem que a lembrança é azul. Assim, apesar da nitidez das cores, uma espécie de bruma a enobrece ao sugerir outra época, outro lugar. A luz não produz grandes contrastes. A figura é quase plana. Como nos retratos japonese tradicionais, apenas a sombra tênue do rosto acaricia levemente o fundo, que bem poderia ser o vidro de uma janela embaçado pela chuva. Numa miniatura persa haveria bicos-de-lacre a texturar a superfície gris.

Quem é ela? Sei seu nome pois consta ao lado do retrato, nada mais sei. Decido que recende a papoulas e o timbre de sua voz é tépido e grave, crepuscular: contralto, para combinar com o alaúde.

Além dos limites da fotografia, expressão viva do desejo, a bela aconchega uma gata angorá no seu regaço.