O Colecionador

Para Carminha Favero Góngora

Certa vez eu, Chuang Tzu,

sonhei que era uma borboleta.

Não sei se eu era então um homem

sonhando ser uma borboleta

ou se sou agora uma borboleta

sonhando ser um homem.

Às vezes, esquecendo sua origem charrua e seu aspecto de contrabandista turco, assume o ar de quem tem o direito de entrar numa loja de antigüidades e perguntar o preço de um (auto?)retrato anônimo do século XIX, ou de um estojo para escrita japonês laqueado e ouvir impassível o valor e balançar a cabeça aprovativamente e passar ao exame de um outro objeto sem que isso provoque o sorriso do vendedor.

No mundo de reflexos que são estes locais, o homem balança a cabeça. Aprova talvez o gosto do senhor de estranho sotaque -- nessas oportunidades veste seu norueguês básico, casaco de veludo e bigode "fin de siècle" --, que com dedos finos manuseia um album de litografias antes de cumprimentar discretamente e sair em silêncio.

Às vezes finge olhar algo na vitrina para observar o lojista. Trata-se de um "connaiseur", deve estar pensando na língua dos antiquários, e a satisfação de tratar com tais indivíduos compensará um pouco a magreza dos lucros provenientes dos verdadeiros apreciadores de sua mercadoria. Ele também se sente retribuído por ter encontrado alguém à altura dos seus dotes artísticos.

A prodigiosa memória permite-lhe que, ao chegar em casa, faça o inventário detalhado de tudo o que viu, lançando na coluna do crédito o total das compras não efetuadas. Agrada-lhe este tipo de poupança e a recomenda aos seus amigos.

Não poderia dizer se seria mais feliz possuindo os objetos. Apropria-se de suas texturas, volumes, proporções, cores, brilhos, e este prazer terá toda vez que torne a visitar a loja. E se as peças tiverem sido vendidas, outras, imprevisíveis, ocuparão a sua atenção.

Não é raro que saia para tais excursões estimulado pela curiosidade do que irá encontrar. Um códice maia? Uma fíbula de prata? Uma teorba? A sentença de morte de uma figura histórica?

Algumas pessoas juntam objetos, ele possui o uso dos objetos. Entre outras preciosidades seu acervo contêm: um entardecer na praça Venceslau, em Praga; Solveig na voz de Elly Amelin; a cor e a forma e o aroma da flor de manacá; esculturas eróticas de cerâmica mochica; a textura de um manuscrito sufi; o rosto de Leonardo da Vinci recriado pela umidade num muro branco; o áspero sabor do caqui verde; um sonho de certo mestre taoísta.

Às vezes lembra um personagem de Daumier. A gravura antecipara a curvatura de sua espinha e a atmosfera -- não há termo mais apropriado -- de sua personalidade, que aos jovens sugere "coisa de museu". A seu modo, ele também é uma reprodução ou um esboço. Sente-se então algo a ser esquecido entre o riso mudo de uma capa de revista e comida sem sal e a pele do pêssego e o silêncio entre dois movimentos de um concerto para violino.