Reminiscências..

Olhar curvado e nem era pelo peso da idade..Homem simples, chapéu de palha, um canivete devidamente afiado que carregava na algibeira. Rolo de fumo pendurado na parede da cozinha; palhas secas de milho cortadas na medida exata pro cigarro..

Havia um ritual naquela criatura magra, olhar miúdo e passos mansos..Acordava sempre no mesmo horário, fazia café forte cujo cheiro exalava até o nosso quarto e nos convidava a pular da cama..Uma espreguiçada e lá íamos sentar à beira do fogão à lenha e ouvir suas histórias longas..

Olhava por entre a fumaça grossa de seu cigarro e aspirava o aroma forte, que provoca náusea. Seu riso era curto e fazia seus olhos fecharem e eu, menina, nao entendia porque seus olhos ficavam assim, sorrindo sem se abrir, mas não perguntava, limitava-me aos pensamentos que desapareciam feito a fumaça de seu cigarro.

Ele não acreditava que o homem tivesse pousado na Lua..dizia que era tudo uma montagem pra enganar os "trouxas"..

Eu acreditava, mas nao tinha argumentos pra convencê-lo e nem queria. Pra quê?

Crescemos naquela casa, rodeado de histórias, fumaças, cheiros e risos.

Não havia luxo nem lixo. Havia a simplicidade de vidas, no chão de tijolos, na casa sem varandas, no colchão de palha, nas camas que rangiam pela idade e molas enferrujadas.

Essa criatura magra, curvada, carregava e assentava tijolos em casas que nunca entrou. ´Levava sua marmita enrolada num pano branquinho, mimos de sua esposa e à hora do almoço, sob sombra de uma árvore, fazia sua refeição, tomava seu café forte e agora frio, sem reclamar. Não me lembro de reclamações suas, nem disparates contra a vida. Era feliz. Em seu silêncio, era feliz.

Seu rádio à pilha completava suas tardes e os dedos não paravam de mexer naquela "rodinha" que mudava de estação a todo momento. Procurava noticiários pra se manter informado das ações do governo, naquela época militar, e as "modas de viola" como ele chamava.

Nunca ouvi meu avô cantar nem tamborilar os dedos grossos e calejados pela enxada, mas sei o quanto gostava de música pois o rádio só era desligado ao deitar.

Engraçado que ele encostava o ouvido nele.. e não era surdo. A música soava baixinho e as notícias também. Só ele sabia o que se passava ali dentro daquela caixinha.

Quantas vezes ficávamos esperando por ele no final da tarde, e ao vê-lo na curva da rua, corríamos para encontrar-lhe.

O corpo e o olhar mais curvado ainda pelo cansaço do dia, e ao nos ver, abrias seus braços e nos abrigava num terno abraço e assim nos levava até em casa..Um neto em cada abraço, sem sentir nosso peso.

Éramos muito felizes naquela casa, ao redor daquele fogão à lenha nas noites frias, aquecidos pelas labaredas e pelas histórias. Acima do fogão, grossos picumãs teimavam em manter firmes mesmo com o vento que entrava pelas frestas das telhas.

Passaram-se os anos, e a distância levou nossas vidas. Cada um seguiu seu rumo, mas as raízes ali ficaram. Plantadas naquela casa simples, com histórias que o tempo jamais apagará.

(Texto dedicado ao meu avô... não mais está conosco, mas suas lembranças fortes não o levaram de nós.)

Carmem Lucia
Enviado por Carmem Lucia em 29/05/2008
Código do texto: T1011037