Hábito
Nas madrugadas solitárias, quando o silêncio impera e a vida repousa, o homem descobre ser possível ouvir o som do coração. Ele desperta de repente, num misto de inquietude e certeza, buscando com todas as suas forças traduzir o furacão que tem na alma. Para isso, observa uma tela de computador, mil oportunidades surgem naquele espaço em branco, revelações se desenham ante os seus olhos que, ávidos pelo saber, comandam a sinfonia das letras.
As dificuldades de digitação, o vocabulário restrito, o sono interrompido, nada impede que as sensações se joguem, sozinhas, num texto tenso, repleto de repetições e novidades, alívio para um espírito cansado.
Cria, então, um hábito de mergulhar em si por meio da escrita, mais fácil do que admitir os problemas pela fala. Como se, ao comentá-los, eles se tornassem mais reais, mais densos, mais sofridos; a escrita, ao contrário, tem o valor da chuva no sertão, traz consolo e esperança em dias melhores.
O papel não restringe, não julga, não sufoca; as pessoas tendem a emitir pareceres, procuram classificar os acontecimentos pra entendê-los. Precipitam uma série de conselhos, receitas prontas para todas as ocasiões, como se o homem fosse criado em série, uma máquina com a mesma personalidade e sem capacidade de inovar.
A água mata a sede, a escrita mata a dor ao traduzi-la em palavras. Não importa que o texto não fique bom, que o escritor não tenha talento, que o computador trave por várias vezes. Não importa que este momento seja interrompido, retomado, sofrido: mesmo assim é um dos melhores remédios para o mal de amor.
Questões vêm à tona: um relacionamento se esquece na vivência de outro? Não, não se esquece, ao contrário, se intensifica, cala fundo no peito. Nos olhos vem á tona a dor, o constrangimento, a revolta consigo e com os outros pela incapacidade de se entregar. Mais dois integrantes para a cadeia de desencontros em que vive a humanidade.
O hábito de escrever não é a solução, mas o início dela. Como se as palavras derramadas tivessem condições de voar até alguém de longe, derramando vibrações em uma chuva de pétalas brancas. Como se só o fato de pensar e traduzir as idéias em rimas fizesse o milagre de falar o que está preso na garganta, desfazer o nó que se formou na despedida, alcançar o íntimo daquele ser tão estranho e ao mesmo tempo, tão familiar.
Contudo, uma carta não enviada é sempre uma dúvida, uma justificativa para o masoquismo, uma armadilha que aprisiona em todos os finais de tarde. Uma vida para questionar: poderia ter sido diferente?
Quando se escreve as idéias clareiam, as sensações se apaziguam, o corpo se acalma... Há um jogo de sedução entre o papel e o escritor, um querer que nunca se acaba, uma necessidade de testar os próprios limites, romper as amarras, um conflito eterno de se encontrar para se perder ainda mais.
Palavras, infinitas companheiras daqueles que choram. Palavras, chances de renascimento. Palavras: têm o dom de dar e manter a vida aos enamorados.