Seis Propostas para o Próximo Milênio
Tenho dedicado boa parte do meu tempo para escrever sobre o Poetrix, por acreditar que este gênero literário ainda está dando seus primeiros passos, de uma longa jornada. É bom lembrar, ainda assim, que ele foi criado há mais de vinte anos, pelo poeta baiano Goulart Gomes, em um momento de lucidez e ousadia.
O Poetrix tem uma ligação muito forte com as propostas para o próximo Milênio, do escritor cubano Ítalo Calvino. Um dos autores mais importantes da segunda metade do século XX.
Calvino reuniu o conteúdo de cinco Conferências, que faria em Harvard. Através delas, propunha para as próximas gerações a perenidade de determinados valores literários. Listados por ele na seguinte ordem: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência. Contudo, o autor faleceu antes de escrever o que seria "a última Conferência" da série.
Para auxiliar a compreensão dos novos poetrixtas, vou falar sobre cada uma destas propostas, exemplificando. Conforme a minha concepção.
1 - LEVEZA é um quesito ímpar, tendo em vista que o Poetrix é um terceto conciso na sua essência e, por isso, não dá margem para muita prosa ou explicações.
Ela é sutil dentro do contexto em que se apresenta.
O "peso" da sutileza, geralmente, fica escondido nas entrelinhas do poema.
O leitor tem que estar atento para que a Leveza não passe despercebida.
Vou esmiuçar um Poetrix de minha autoria para explicar este conceito.
Vejamos:
Terra
eclipse solar,
anel de fogo
no dedo de Deus
No primeiro verso eu digo: "eclipse solar". Eclipses, produzem surpresas, reviravoltas, acontecimentos inesperados - Multifacetados. Têm força.
No segundo verso, vou mais longe, afirmo "anel de fogo", com precisão e determinação, não deixo dúvida da minha intenção.
No terceiro verso trago a Leveza do poema quando digo: "no dedo de Deus", desvendando um fenômeno celeste criado pela Divindade.
2 - RAPIDEZ - Poetrix nesses moldes são difíceis, são ímpares, são raros. Neles a escrita, os sons e as cores, devem estar interligados, pois caminham ombro a ombro.
A rapidez de pensamento proporciona mobilidade, agilidade e desenvoltura ao texto. Para tanto, é necessário buscar na concisão um fato que seja capaz de dar conta do significado que se queira dar ao poema.
Vou lançar mão de um Poetrix de minha autoria para exemplificar o que foi dito.
Alcoólatra
desaba
aos bafos
o bêbado
A leitura é extremamente rápida, são apenas cinco vocábulos distribuídos em três versos.
É importante que se perceba a sonoridade que a consoante "b" impõe ao texto.
É justo salientar que a palavra "desaba" trás em si a ideia de barulho, é como se alguma coisa estivesse caindo "em si mesma".
Outro componente importante é a mobilidade que a leitura proporciona ao leitor. É "visível" a cena de um cidadão despencando de sua conduta. Ele vai tropeçando nas próprias pernas. É um desgoverno total e inevitável que se processa na cabeça do leitor.
Outro exemplo:
Trégua!
(Goulart Gomes)
tu matas
porque não
(h)ammas
O título já diz tudo. A leitura do texto é instantânea, é um piscar de olhos. É o extremo da rapidez.
É possível imaginar bombas, tiros, canhões. Corpos estendidos pelo chão - horror!!! horror!!!
Aborto
(Hércio Afonso)
fi-lo
não qui-lo
desfi-lo
Destaco aqui, a "mobilidade do texto". A cena parece real: gravidez-feto-morte.
Veja também a relevância do som e da grafia que aparecem na leitura de cada um dos versos. O leitor não tem tempo para tirar os olhos do texto.
O poema está perfeitamente dentro do que propõe a Rapidez, e mais, os elementos que compõem a cena são insubstituíveis.
3 - EXATIDÃO - Vou explicar o que compreendo que seja, sob a ótica da Bula Poetrix.
Sem dúvida é um dos princípios mais "terríveis", a meu ver, quase impossível de se conseguir. Um verdadeiro embate poético!
Tercetos nesse nível de complexidade são raros, mas nem por isso devemos deixar de lado o desafio de produzi-los.
Passei alguns dias procurando em minha mente algo que atendesse a este requisito. Confesso que encontrei, com dificuldade, três exemplos bem representativos.
Vejamos:
Devolva-me
AS
AS
AS
(Sônia Godoy)
Este Poetrix tem "a capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação". Ele vai além do que está escrito, do que está posto. Isto sem falar que qualquer voo tem que ser exato, preciso, milimétrico.
Imagino o deslumbre de uma águia voando rente à face mais íngreme do penhasco, qualquer descuido será fatal, não terá volta!
A nitidez do "voo" é tão grande que se o poema for escrito na vertical, sua leitura não terá o mesmo sentido.
Este poema nos permite inúmeras e inquestionáveis leituras. Provavelmente se enquadra em quase todos os itens da Bula Poetrix.
É importante que se leia o poema tendo em mente o título. Desta forma cria-se a imagem das asas abertas em voos livres.
Por outro ângulo, posso até imaginar que este seja um pedido de socorro.
Ou ainda...Um "por favor": devolva-me a liberdade, preciso voar, buscar outros mundos.
Vejam o que disse a própria autora - Sônia Godoy.
"Estava apaixonada, fui abrindo mão de tudo, perdendo as asas. Finalmente tentei voar, voar pra longe (mas não conseguia), assim descobri que as asas são formadas por "as" e mais "as". Daí ...foi só gritar, gritar: Devolva-me as asas, como se a culpa da minha incapacidade fosse ele".
Outro exemplo, de minha autoria:
Ciclo vicioso
S
S O S
S
Vejam que é possível criar imagens novas a partir destes símbolos. Por exemplo: Socorro! Help!
Este é um terceto preciso. No sentido da Exatidão, não no sentido léxico.
Vejam o comentário de Goulart Gomes, o criador do Poetrix.
"Transmite a ideia/sensação de alguém andando em círculo, sozinho e pedindo socorro. A onomatopeia Ssssss remete a sussurro, ou pedido de silêncio. É o ápice do minimalismo! Genial. Esse Poetrix visual eu queria ter escrito!"
Outro exemplo:
(má)(temática)
(Ângela Bretas)
não adiciono
sou
sub(traída)
É interessante notar a exatidão das palavras no sentido léxico, ela é cristalina, latente, poderosa.
É imperativo que se observe o conjunto das palavras das quais a autora lançou mão para desenvolver sua ideia.
Neste exemplo ela deixa evidente que a relação acabou, não esconde nada. É categórica ao afirmar: "sou traída", "não adiciono", é "má a temática". Sem dúvida é uma verdadeira sequência de fatos bem articulados, coerentes e exatos.
Em outras palavras: "a Exatidão seria a qualidade de empregar a linguagem a fim de aproximar-se das coisas de modo a transparecer o conteúdo que as coisas transmitem sem o recurso das palavras".
4 - VISIBILIDADE - Esta é uma proposta interessante.
Através da poesia concreta, onde os símbolos falam mais alto do que propriamente as palavras, é que consigo perceber e entender a visibilidade com mais tranquilidade.
É preciso muita concentração e um grande apego ao que propuseram os irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Temos que entender que o aspecto gráfico do poema é o seu elemento central.
A representação imagética é o significado ou simbolismo que uma imagem possui. Veja que estamos falando em imagens poéticas. Algo grandioso e denso. Portanto, é possível, e genial, que um poema, mesmo não sendo concreto, tenha a capacidade de produzir uma imagem... na mente do leitor.
Para exemplificar o que estou dizendo, vou recorrer a um Poetrix concreto, de minha autoria.
N(amor)o
-->
<--
--><--
O título, por si só, já nos dá uma direção do que será o desenrolar da trama. É, sem sombra de dúvida, o foco central da ideia.
No primeiro verso tenho, subliminarmente, a concepção de uma suposta pessoa caminhando para o leste.
No segundo verso, ocorre o contrário, uma outra pessoa caminhando para o oeste. Ao passarem um pelo outro, pressupõe-se um flerte: "relação amorosa mais ou menos casta, leve e inconsequente, geralmente destituída de sentimentos profundos".
Já, no terceiro verso, vem a concretização do que está dito no título: o namoro. As pessoas caminharam, ao cabo, uma na direção da outra, e se encontraram, iniciando assim uma relação amorosa.
Para uma melhor visualização eu poderia ter digitado as setas (indivíduos) em cores distintas, por exemplo: uma em preto e a outra em vermelho. Esta seria mais uma das opções de visibilidade - possível.
5 - MULTIPLICIDADE - Este é um dos elementos mais sofisticados das propostas em questão. Tanto sua compreensão quanto sua execução exigem um esforço adicional do autor que se aventura a escrever Poetrix.
É preciso recorrer a artifícios de escrita não convencionais. Como por exemplo: o uso de parênteses, símbolos, paródias e outros. É uma verdadeira rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo.
O conceito parece simples, mas na hora da composição ele se agiganta,
as dificuldades aparecem a todo instante.
O que acaba fazendo com que o caminho não seja "singelo" para os que estão iniciando na arte de escrever Poetrix.
Mais um exemplo de minha autoria.
Água_benta
sara(cura),
preciso...
três potes! três potes!
Vou partir do título.
A água é um símbolo universal. A "água benta" é sacramental e concede às pessoas e aos objetos aspergidos, proteção contra os espíritos infernais. É notório o duplo sentido que foi dado à palavra água.
No segundo verso escrevi "sara(cura)". A intertextualidade aqui fica evidente. Primeiro porque usei o parêntese para dar visibilidade a duas palavras: sara e cura. Para fazer o contraponto com a "água benta" que simboliza a cura, a proteção divina. Numa segunda leitura do primeiro verso podemos ler a palavra "saracura". Uma ave semiaquática pequena, de plumagem preto-acastanhada e branca.
No segundo verso eu digo "preciso...". Para se beneficiar da Água Benta seria preciso que se tomasse "três potes".
A expressão "três potes" no terceiro verso representa o canto da saracura. O canto é bem alto (e preciso - do segundo verso) e varia muito de acordo com a região, principalmente no ritmo, no timbre e no compasso. A ave canta anunciando/"pedindo" chuva, o que trás mais uma ligação com a água... Logo, a expressão da pluralidade é enorme.
6 - CONSISTÊNCIA - A Consistência poética é um imenso desafio, principalmente do ponto de vista da homogeneidade, da coerência, da firmeza, da compacidade e da densidade dos seus elementos constituintes.
Sair do lugar-comum é uma tarefa árdua, é preciso estar totalmente imbuído do que se está desejando. É preciso ainda, conhecer os mínimos detalhes e regras do Poetrix para que não se caia na vala comum.
Abaixo nós temos como exemplo um Poetrix da poeta Aila Magalhães.
Vou explicar como o conceito "Consistência" se aplica a este terceto.
divi_dida
não queria
ser deus,
só duas...
O título "divi_dida" já foge do que é comum. O usual seria se a autora tivesse escrito "dividida". Este detalhe impõe uma leitura diferenciada. este artifício já é uma estratégia para a articulação do texto. Materializa a divisão, a cisão.
O título é uma síntese do tema. Ele nomeia o poema, estabelece vínculos com informações textuais e extratextuais. Contribui para a orientação da conclusão a que o leitor deverá chegar.
Dito isto, vamos ao texto.
Vejam que o poema é muito pequeno, de poucas palavras, mas de um alcance enorme.
É importante observar que a palavra "deus" foi escrita com letra minúscula, servindo apenas como uma referência ao fato de ela não querer ser somente mais uma na multidão.
Um poema consistente, ou seja, com versos bem ajustados, coesos, com "peso" no sentido poético.
Vale dizer ainda que o poema não sugere a troca de lugar entre um ser humano e uma divindade.
Falar sobre temas tão complexos sempre significa iniciar reflexões acerca deles. Para mim, um prazer e um exercício constante.
Desejo que minhas buscas de aprendizado possam auxiliar a cada um que comigo comunga o encanto pelo Poetrix.
E viva a poesia!!!