COTIDIANO - II

No espelho da vida

Penteio o cabelo e me perfumo

Para amar as mulheres que não existem

Afino a sensibilidade e declamo versos para elas

No pátio da noite

Assistem-me as estrelas

Sinto-me atado a uma teia de silencio

Tecida em minha alma pelas mãos frias do

Alheamento que me faz incapaz de

De ver, de sentir, de amar e de ser amado

Ainda me incomodam as paredes vazias

No entanto, sou simples, crédulo e cotidiano

ando descalço e não tenho ambições terrenas

Gosto de acordar bem cedo

Para sentir o hálito de alecrim das manhãs

E comover-me com o canto

dos coleirinhas, joãos-de-barro

E o pranto convulsivo das saracuras

Eu reparto o espaço com eles, onde vivo

Mas sei que o espaço é deles

Onde sou apenas mais um intruso

Um animal, triste e silencioso

Deslocado no espaço e no tempo

Vagando num pensar que é doença