A Chama da Lamparina do Moinho da Vida
A Chama da Lamparina é a suprema língua de fogo
Que corta, perfura e esviscera o ventre da noite,
Sangrando a escuridão com um ósculo cálido e fogoso,
Enquanto a tempestade, lá fora e aqui dentro,
Rufa os gritos ensurdecedores das mortes e dos trovões
[Os quais clamam e bradam um cântico de fulgor divino,
Entoado pelas gargantas dos relâmpagos e raios abismais,
Numa fotográfica moldura panteística, bela e selvática,
Fosforescendo como o ancestral olhar ígneo e furioso
De uma estupenda deidade primitivamente desconhecida,
Tão primeva quanto a aurora de antes do primeiro suspiro,
Expirado pelo jorro da primeira luz parida lá, inenarravelmente.
O Filho do Homem soergue a Lamparina pelos silêncios da casa,
E flameja Ele a Chama da Lamparina, que testemunhou
O nascimento, o primeiro riso e o derradeiro choro
Da divina criança que brincava de pião
Com as longínquas estrelas do firmamento,
E atirava pedras nas casas e nas coroas
[Dos imponentes reis, dos mendigos e dos anjos caídos.
Esta Chama outrora adorada como uma divindade
[do solstício a oeste do Éden,
Esta Chama que esculpiu utensílios, ferramentas, armas, guerras...
Esta Chama que imolou holocaustos de crianças e de animais puros...
Esta Chama ingerida e vomitada por três anjos divinos e homicidas
[para purificar Sodoma e Gomorra...
Esta Chama que penitenciou as abominações das bruxas, dos pagãos,
Dos incrédulos, dos evolucionistas, dos que amam a veraz Ciência
[de todos os inimigos da Noiva de Deus...
Esta Chama que inflamou a volúpia adâmica e corrompeu
Todos os rebentos de uma descendência decaída pelo pecado alheio...
Esta Chama que explodiu e expandiu a floresta negra e vazia do universo...
Esta Chama que segredou os ardores dos que se entregaram
Aos eflúvios voluptuosos de todos os reinos e dimensões,
[Da carne em ávida paixão, da alma em sublime amor...
Esta Chama que entenebreceu lares,
Barcos, caravelas, tribos, costumes e crenças,
Tantos e tantos corpos violentados e afogados
Pelas profundezas da ganância incendiária,
Daquela sede insaciável por cetros e tronos de poder,
Pelos instintos sanguinolentos mais hediondos e pérfidos
[Que despertam de debaixo das pedras da alma humana.
Ó Chama belígera, Chama da Lamparina matutina e vespertina:
Vós que queríeis que Abraão se tornasse um assassino exemplar
Ao exigir a imolação do filho Isaque e o pôs como pai de muitas nações...
Vós que norteais embarcações por mares dantes navegados
E comercializou o tráfico de seres humanos como meras bagatelas...
Vós que outrora alimentais a fome dos trens em seus vagões superlotados,
Cheios de crianças, mulheres e homens, milhões de judeus ao vil Holocausto...
Ó supremo General que incitou a Guerra da Argélia, a Guerra Colonial Portuguesa,
A Guerra de Independência de Angola, a Guerra do Vietnã,
A Ocupação soviética do Afeganistão, a Guerra das Malvinas,
A Guerra da Bósnia, tantos conflitos e tantas guerras quentes e frias,
E sob teu olhar e coração belicosos e com teu cajado onipotente
Conduzistes tantas carnificinas no século XX e em toda a História,
[Ó General da Guerra do ontem, do hoje e do amanhã.
Esta Chama que esculpiu o corpo e a alma
_Ou as ideias do que sejam corpo e alma_
De todos os deuses cultivados pelo medo e por nações,
E por aqueles e aquelas que ainda brotarão
[Dos solitários seixos dos vetustos rios, totens e altares...
A Chama da Lamparina a abrir
[As cortinas das janelas suicidas,
E cavalgam os risos dos irmãos, agora mortos,
Mas que antes brincavam, felizes,
[Entre as bananeiras do quintal,
E o Filho do Homem espia as cadeiras, salas e sofás
[Tão existentemente reais e tão vazios neste lar,
E chora em silêncio, pois não tem onde a alma reclinar,
Não tem descanso, distrações e sábados para descansar,
Não tem pais para um dia sepultar e prantear,
Não tem sequer um fiel e sincero amigo
[Em quem poderia abraçar e confiar,
Não tem esposa para conversar, brigar e amar,
[Sequer tem preces e deuses a quem poderia orar!
Só tem um Corpo!
[O velho e ferido Corpo,
Este Corpo tão cheio
[De tantas marés jorrantes nestes oceanos secos...
A Chama não reside na Lamparina. Está além!
A Chama é a substância etérea e carnal da Lamparina,
[Assim como o Ser da Lamparina é a reluz-ente Chama,
E esta unidade indivisível, intrínseca e indistinguível
Entranha-se nos férteis vales de centeio e de trigo
E nos abismos vazios do Filho do Homem,
Transubstanciando estes três seres
[Sempiternos, soturnos e umbrosos
Num único corpo e num único espírito portentosos,
Neste ente supremo e simples a que,
Num aflorante revérbero de um instante perene,
[Denomina-se, indecifravelmente, Moinho da Vida.
Outrossim... sim, sempre haverá um outrossim...
A aberrante Roda do Moinho frondejante e vazio
[Que imovelmente movimenta
_Tão germinante e tão dilacerante_
Cada parte do Todo e cada todo do Nada
Deste prodigioso, faustoso e plenamente absurdo,
[pois nada há e, todavia, sempre existe aqui e lá]
Deste faustoso e absurdo Moinho infinito chamado
[VIDA.
No incriado existir, gira a Roda do Moinho radiante,
Entre ventos cósmicos, seu giro transcende o tempo incessante,
Mistérios ancestrais conjugados em cada volta serpenteante,
Entre sonhos e realidade, o Moinho da Vida segue delirante,
Pelo fluir das eras imemoriais, o Moinho ondulante
Gera luzes e sombras neste rodopiar tão constante,
E tudo é o que não é, bem como não é o que é e que jamais foi,
Tudo indo e crescendo e morrendo e voltando
nas asas cortantes deste Moinho da Vida,
[tão absurdo e aberrante.