Nas quebradas e não quebradas

Nas quebradas e não quebradas

De meu contraditório bairro,

A minha filosofia de jornada

É KA 2007 de vidro baixo,

Enquanto o ar vai entrando

Nesse suave e festivo fim de tarde,

Com Sol na suja capota, de quando em quando

Feito por criança travessa com toda arte.

Ao pedir, por conta da fome, um Beirute

No Habibs, eis que ao longo da rua

Uma senhora parece uma infinitude

Por esperar o marido bem antes de ser Lua,

Ao passo que ainda decerto há

Civilização, pois um certo passageiro

Lê no ônibus em meditativa paz

Um livro que o faz e refaz inteiro.

Existe uma comprida mesa

Onde senhoras de razoável idade

Entornam boas e não poucas cervejas –

Sem ao certo nenhuma piedade.

O brinco, no vai e vem, da garçonete

Leva um caleidoscópio de Miró

Em profusão de cores que não se vete,

Tamanho o lirismo com que o admiro.

Depois de pança cheia,

A igreja da Universal, nas cúpulas,

Assemelha-se a Istambul nunca

Conhecida, mas presente na veia.

E quando olho para o crepúsculo

Bate em minhas pálpebras

Como se fosse bigodes de felino,

Mesmo em vida não amena.

Os raios tão oblíquos

Atravessam os prédios pichados,

Dando fulgor ao talvez supostamente iníquo,

Que há em Sampa por todos os lados.

As moças bonitas são fluxo

De perfume nos engarrafamentos,

À medida que o meu impulso

É ser pisca-alerta ante tais contentamentos.

Nas minhas idas e vindas por aí,

As folhagens em volta estremecem

Ao vento, pois são aqui e ali

O que os olhos em sonho tecem.

Da minha solidão posso dizer

Que sou a alcateia

De um lobo só em elixir

De uivos a romper com as teias,

Onde os vales são montes

E os montes toda parte e nenhum onde.

Maior do que cachorros,

Menor do que ursos de vulto,

Não temo do mundo os morros,

Nem em nada hiberno, nem me confundo.

Do museu ao mausoléu,

Já fui, bem sei, do céu ao inferno,

Como também do inferno ao céu,

Tanto interno quanto externo.

Carrego por toda a minha pele

Umas tantas cicatrizes

Que são sem dúvida diretrizes

A tudo que por bem me compete.

Qualquer que seja o dia

Desafino ou entro no compasso,

Ao vir a ser alguma melodia

Por onde vou com meus passos.

Sei mais, bem mais, de mim

Num insuperável olor

De um carnudo e aveludado jasmim

Do que nos espinhos de outra flor.

Portanto, pouco a pouco,

Por mais que tanto, mais tanto,

Seja por sinal como destino oco,

Me esqueço ao ser canto,

Haja vista que tudo são pistas

Que às aventuras me instigam.

Fábio Padilha Neves
Enviado por Fábio Padilha Neves em 04/02/2023
Código do texto: T7711603
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