Fundo da Cacimba

Fundo da cacimba

Camperiando pelas terras

Cultivando o orgânico na enxada

De gaiato nos açudes

Eis que a redoma sai prejudicada

Em uma bela manhã nublada

No campo coberto de geada

Acompanhado do meu galgo

Vou à cacimba para buscar água

De um inverno gaudério

Uma milonga sorrateira

Chego à cacimba

Com corda e balde na beira

De jaquetão para evitar o frio

Ouço o latido do meu galgo

Noutro canto do campo

Resvalo na beirada da cacimba

Rodopio nesse entreolhar para a roça

A procura do meu galgo

Caio dentro da cacimba

Amortecido da queda com água até o pescoço

Seis metros de fundura

Cacimbinha antiga empedrada

Um rosnado do meu cachorro

Procurando-me, pobre diabo

Morando sozinho no campo

Sem saber como voltar para cima

A queda deixou machucado

No sacolejo dos ossos

Fechou o salseiro

O que me atino a fazer?

Esperneio entre gritos

E o eco faz ponteio

Seria um sortilégio a queda?

Ou só fruto do meu descuido?

Tombo dos infernos

Ninguém por perto

Eis que a redoma sai prejudicada

Com o trambolho do balde

Batendo nas pedras

No cansaço da gritaria sem sucesso

Bate a tremedeira do frio

Um filme passando nas rugas da vida

Na tarde o campo já oreado

Faço oração até para o diabo

O que viesse pela frente e ajudasse

Como aquelas pessoas da cidade diziam

"Parece que estou no fundo do poço"

A vida golpeia os garrão da ousadia

A noite chega e faço uma pajada

A capela e depois fico num palavrório

Para tentar esquecer o meu destino

Para esquecer os atos simplórios

Um dia se passa e o galgo vez ou outra late

Fico contente do seu latido

Está por perto, um regalo para o meu ouvido

Não estou sozinho.

Com frio, fome e enfraquecido

Fico remoendo meus causos da vida

Maldita urupuca que preguei a mim mesmo

Tomo um vareio de cair o lenço do pescoço

Ouço o latido do galgo diminuindo

Distanciando-se da cacimba

"Deixe-me sozinho, meu amigo.

Nada podemos fazer"

“Mas que xucrice

Na garupa do infortúnio

Cheguei ao fundo da cacimba

E parece que não consigo mais sair”.

Que imundice me padece

Uma tragédia que penso

No campo, no galpão e nos sarandeios

Na vida que foi regalo dos pais

Orando pra Deus e o Diabo

Pra tudo que pudesse me arrancar dali

Essa barbaridade é tão comum?

Vou buscar água para meu proveito

E desse fundo de cacimba não mais saio.

Ouço vozes se aproximando

E o latido do meu galgo

Quase dois dias haviam se passado

“Me tirem daqui, por favor”, gritava eu, desnorteado

Delirando nessa gastura interminável

Os olhos fechados esperando algum milagre

Uma corda bate na minha cabeça

Esticada até o fundo da cacimba

Socorrido ao final da prorrogação

Entre a vida e a morte

O azar de ter caído na cacimba

E a sorte de ter sido retirado com vida

Vão me falar que nesses entreveros

Eu tenho 100% de razão de tudo

Quem sabe até o diabo tenha me ajudado

Vendo uma pobre alma no fundo da cacimba

Talvez não fosse minha hora

E agora sigo o baile no ginete do meu pago.

Recesolo
Enviado por Recesolo em 22/09/2022
Reeditado em 22/09/2022
Código do texto: T7611922
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