A cobra

Quantos fascínios podem vir na quietude?

Um brado que só existe no silêncio puro

Emanam maravilhas vindas de outro mundo

Que tão docemente minha alma infunde

Envolto de treva que me é amiga

Aconchega, como mãe cobre o filho adormecido

Assim sendo desde que percebi ser íntima

Da escuridão que sempre vem me seguindo

Lá fora posso ouvir latidos e mais ruídos

Trava-se uma batalha entre meus sentidos

Onde quem sai vitorioso sou eu mesmo:

Todos os grosseiros sons abafados pelos cardíacos

(É mesmo este o tão dito a mim ermo)

Me vence aos poucos um sono inimigo

Embriaga-me, há tanto tenho disso fugido

Vezes triunfante, vezes derrotado: caído

Vem para não ficar: é a natureza daquilo

Mas seguirei alerta ao meu sagrado desígnio:

Olhos abertos, ouvidos atentos; tudo sentindo

Para que me venha a esperada brisa de fora

Levar o meu ser ao paraíso, sem demora

Eis, então, que nessa estática odisseia

Surge, invasor, não sei d'onde, névoa

De negra cor e também mui espessa

Unindo-se àquela escuridão egrégia

(Admito: desconfio do caráter dela)

E já sendo tudo tomado pelo negrume

Resta-me seguir em frente na missão

Pois, falei, acostumei-me co'a escuridão

Já até sinto seu aroma, é como perfume

(Avisei: íntimo sou do escuro que surge)

Aos poucos vou constatando mesmo

Que toda e qualquer treva me faz bem

Deve ser porque vejo nelas eu também:

Um frágil existir à luz sempre sujeito

E divagações infinitas vão me vencendo

Entrego-me à correnteza sem medo

Mas algo surge para interromper isso:

Ouço tão perto de mim som de guizo

E era isso mesmo que escutei

Quando às minhas pernas olhei:

Era, subindo em mim, uma cobra

Vi que tinha entrado pela porta

Reluzente como se fosse de prata

Subia me encarando fixamente

Dominado fui por aquela serpente

Que veio acabar com a noite pacata

No meu ombro ela ficou parada

Deixou o corpo frente ao meu rosto

Encarando-me ainda continuava

Como quem se comunica com o olho

Ah, aquela prateada pele à minha vista

Brilhava tanto aquela viva prataria

Estonteado fiquei, eu digo e repito a ti

Acredite: parecia até que ela sorria

(Só mesmo Deus sabe o que senti!)

De tanto júbilo minha alma fora tomada

Que nem mais agia com a razão

Não ouvia, como antes, meu coração

Apenas aquilo, infinitamente, queria

(Naquela hora uma lágrima até escorria)

A luz que, fatalmente, ali reluzia

Todo breu do quarto consumia

Lembrei-me da visão de espelho:

Mas não fui tomado pelo medo

(Pois é mesmo uma regra da vida)

Quis tanto que clamei: "- Me inebria!

Faz-me desaparecer em ti para sempre

Ó luz que, por minha graça, me ilumina"

Foi a primeira vez que senti a sacra brisa

Os olhos fechei, para poder ver:

Tal qual a mim, o escuro ser tomado

O maior dos prazeres que poderia ter

Tanto que, revelo, é ele infindável

(Senti meu pescoço ser enrolado)

Aí então respirar eu não podia

Porém, em verdade, não queria

Esta morte é, de fato, vida

Sufocou o que a mim não servia

(Ao infinito eu ascendia!)

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 05/03/2022
Reeditado em 06/03/2022
Código do texto: T7466066
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