A C O R V A C H A

A CORVACHA

Numa noite úmida, tênue e triste

Cercado por ciências ancestrais

Quase adormecido questionei

A sonoridade colidia na janela

Alguém está a bater nesse portal

Apenas isso, não é nada demais

Na meia noite eu lia atento um livro

Narrativas de Poe noutros portais

Quase adormecendo ouvi no vidro

Da janela o tremor de asas inaturais

Alguém, um pássaro talvez noctívago

Se debate na janela, nada mais

Na noite fria o piar da coruja sucedia

Estranha inquietação em mim surgia

Eu, ganhando força passo lento segui

Direção ao bater de asas que tremiam

Uma ave impondo entrada na vidraça

Não é mais que isso, nada, nada mais

Sou forte, mas no momento hesitante

Senhora das asas negras me desculpai

Estava adormecendo quando batendo

Despertaste-me de sonhos ancestrais

Leves asas molhadas ardem batendo

Eu desperto: pesadelos antepassados

Talvez não durma nunca mais a treva

Fitando, infinitas noites orbes desiguais

O debater de tuas asas os sonhos levas

Cheios de ais, sonhos sim que ninguém

Ninguém sonhou jamais ecoam histórias

Que não se contaram nunca, já, jamais

Minha alma arde nesse fogo, essas ansas

Me trazem através dessa janela, sinais

Que dizem esses presságios, é o vento

Nada mais? Abri então pasmo a vidraça

E a nobre e solene corvaça impeliu-se

No aposento, não é o vento e nada mais

Ave estranha, escura, sorri de amargura

E de suas artes rituais. Parecia provinda

De uma necrópole longínqua, perdida

Em tempos raros, idos, foragidos infernais

Pasmo, ouvi o raro pássaro grasnar, rashra

Como se quisesse algo mais me comunicar

Pensei mesmo ouvir, sentir o pássaro falar

Mas, que teria a dizer uma ave pousada

Sem recato, nesse meu quarto a espreitar?

Sua voz, seu pensamento, ave sabe pensar?

A corvaça agora robusta, dissera-me augusta

De seu bico saíam as palavras: “nunca mais”

Imprevista, minha alma movida e a mente

Por singularidade desperta e premente pensei

Essa ave se desgarrou nesse canto e abandono

Seu bordão calou em mim profundamente

Fazendo-me sentir grande tristeza e amargura

Em grasnados cheios de ais: “nunca, nunca mais”

Permaneci à borda da cama frente a frente ela

Crocitava o refrão memorial: “nunca, nunca mais”

Acercava-se de mim seus olhos grandes, negros

Queria ela dizer algo sobre meus ancestrais?

Repetindo, agora eu com certo medo: “nunca mais”

Sombras de fantasmas apareciam muito desiguais

Minha alma mergulhava em infinitos pórticos

Átrios e pátios fronteiriços, alpendres, umbrais

Suas sílabas repetiam-se dizendo proféticas

Infaustas, trágicas, recitando plásticas crocitadas:

Cada pronúncia cravava-se em minha psique

Na consciência reverberava: “nunca, nunca jamais”

Cismando entre sombras colossais um ar denso

Atmosfera de incenso renascido de cemitérios

Arquetípicos de sentidos esquecidos tempos idos

Reverberavam penitentes, mortificados, ausentes

“Nunca, nunca jamais”: como se anjos malditos

Estivessem em cântico gregoriano a bisar: “jamais”

Que profecia é essa que me queres dizer a mais

Que tempestade longínqua te trouxe em meu portal

Tua cor revela um luto majestoso, horroroso

Retumbam tumbas de teu grasnar: “nunca mais”

Um bálsamo de lágrimas atrais, ânsias e medos

Distantes, remotos, infernais. Que queres mais?

Trazes até aqui esses sons de outras vidas, perdidas

No tempo do nunca mais. Proveniente és de sortes

E hostes imortais? Ave negra entristecida demais

Procedes, descendes de hostes de demônios celestiais?

Te perdestes de um Éden no qual não voltarás jamais?

Quanta solitude e exílio nesse tua angústia de trevas

Estás talvez querendo dizer-me que os mundos

Universos perdidos de antanho afazeres inexistem

Para sempre abandonados no passado transcorrido

Provecto e nunca mais hão de ser presentificados?

Queres que eu afirme meu adeus a essas almas

De uma espiritualidade muito, muito do passado!

Queres me afirmar um desenho desse quadro

Como se fosse filho de legiões de seres descarnados

Que nesse sistema solar um dia tiveram reinado

Que luzes tristonhas de sombras acaricias minh´alma

Civilizações, culturas estelares do nunca, nunca mais

Em que sois habitaremos nós, filhos do tempo jamais?

(P.S: CORVACHA É A FÊMEA DO CORVO).

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 20/08/2021
Reeditado em 20/08/2021
Código do texto: T7324741
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