EPOPEIA DAS AVES
CANTO I: CHOCADOS
No alígero romper da rubra aurora
O Abutre esbarra neste fim de farra
E o olhar num instante se demora
Na presa, à qual agoura a adunca garra.
Numa espelunca espera a negra hora,
Espera a negra hora uma algazarra;
E implume o Pombo ainda a vida implora
E reza... E co' o Pavão o Abutre esbarra.
"Todos os meus amigos estão mortos,
Murchas também as rosas sem orvalho,
E saiba, Abutre biltre de pés tortos,
Quando bancar a próstese do pálio,
Às aves más frangalho e espalho as penas,
Tão forte tunda dou-lhes. Seje menas!"
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CANTO II: OITAVES
ABUTRE,
Malandramente buscando impor-se ante o adversário e marcar seu território:
"Não como os mansos bois que apenas mugem
Incautos a marchar no abatedouro;
Não hei de fácil ter minha penugem
Roubada por tirano, pois sou touro.
O orvalho quando abunda faz ferrugem
No ferro, e à falta murcha a flor de agouro.
Sou ave de rapina, a Natureza
Assim me fez, e o Pombo é minha presa!"
POMBO,
Temendo a Fortuna, fecha os olhos e como com o Abutre não pode batalhar, uma luta de ideias empreende:
"A hora é morta. Lânguida, a cortina
De Osíris cai aos olhos. O que a pena,
Exata, no ultimato, a mim destina?...
Porém, se vivo, a vida ainda acena,
E então co'as minhas penas, minha sina,
Preocupar-me-ei. Com o presente Geena.
Como ao fraco legaste a fé, Natura,
Ao Pavão-Rei eu rezo nesta agrura."
PAVÃO,
Pairando de um galho à alfombra e abrindo a cauda multicor em defesa do Pombo:
"Abrenúncio, ave negra dos agrestes!
Erga-se o gládio aceso em chamas alvas
Contra o furor, penumbra que impusestes!
Verta-se o próprio sangue em vossas calvas,
Fios do Letes que tomeis por vestes.
Enquanto eu viva, as aves serão salvas
De vosso esgar, e livres voarão,
Inda que eu deva agrilhoar-me ao chão."
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CANTO III: POMBO COMBO
O Abutre e o Pombo ouviram o Pavão,
Que, com voz de barítono e trovão,
Dissera aquelas belas curtas frases,
Sem nunca errar na vírgula ou nas crases.
O Pavão, sábio, o movimento primo
Aguardou do altaneiro Abutre, o imo
De sua técnica quis ver... E viu!
Desceu o Abutre e, altivo, o Pavão riu.
"Tolo! Vencer-me vós jamais ireis;
Quedam-se principados, tronos, reis,
Queda-se o tempo e o quanto vivo é,
E, impávido, mantenho-me de pé."
"De pé! Tu bem disseste. Ao chão és preso
Sendo presa dos céus e a ele indefeso!"
O Abutre desce, e bica, e arranha, e tolhe
E o Pavão, antes Behemoth, se encolhe...
"Do inverno o sol se esconde, cai em tombo!
Mas sei que há o Solstício!" Diz o Pombo.
E o Pavão as feições alça, serenas,
E, mais que poderoso, ele abre as penas.
Assim as duas aves se encaravam,
E o chão do Abutre as pernas já escavam;
O estéril solo arranha, a garra adunca
Da qual nenhuma presa escapou nunca
Revolve o árido grão daquela terra,
E o ritual começa para a guerra...
Em círculo simula o passo tardo
Com que o boi manso arrasta um grande fardo.
A ave diva, ignorando as duras chagas,
Tomou da cauda penas que de adagas
O fio partilhavam. Tão-somente
O Abutre se exaltou ante o iminente
Golpe, era tarde: as penas de esmeralda
Cortaram-lhe as feições. Aberta, a cauda
Era arma e escudo que de luz se nutre;
Porém não cede à dor o imigo Abutre.
"Hás de cair, infando; o estratagema
Fatal se desenrola. Veja e tema!"
Armada, a cauda cede ante ao revés:
Co' o bico abjeto, o Abutre alça, através
Da carne do Pavão, mais de mil doenças...
"Não caia ante estas vis sentenças",
O Pombo diz. "Solte o Pavão!" — ulula.
E o Pavão: "Não me atinge esta arma chula!
Não sou galinha preta de terreiro;
Sou pássaro mui ínclito, altaneiro;
Comigo um sortilégio assim não vinga,
Meu corpo não se afeta por mandinga.
Se agora haveis provado, inda que falso,
O gosto da vitória, eu vos realço
Com dor e sofrimento como é amarga
A derrota dos maus!" E faz-lhe a carga.
O Pombo então percebe a tal postura
Que o Pavão incorpora na mais pura
E espontânea decência: "Oh, meu Deus!
O que é este ato? Por que seus
Braços se abrem tanto? Oh, ser há-de
Um seu lendário golpe de piedade,
O "Bye-Bye-Birdie", ou — Céus, já me apavoro! —
"Milhar de Ocelos: Chuva de Meteoro"?!
E o nobre herói, a cauda feito um leque,
Após um último salamaleque,
Irisdesceu seus mil reais ocelos
Num espetác'lo tal, que só de vê-los
Brilhando feito o sol, o Abutre soube
Que estava por morrer, e já nem coube
Dizer, arrependido, coisa alguma;
Apenas de inflamar-se cada pluma
Serviu o Abutre como testemunha.
E resignado, e quedo, se acabrunha
Enquanto os mil ocelos do Pavão,
Num brilho e num vibrar-se de trovão
Enfim são quais lucíferas adagas
Que o corpo dele cravam, deixam chagas
De luz queimadas. Feito um espantalho
O Abutre viu-se implume ou em frangalho,
E só por pouco não morreu, vergonha
Igual nem pode haver a quem se imponha,
Não tendo forças tais mas só emule,
Contra outras aves a fazer-lhe bullying.
Contudo, a Célia Mão logo se eriça
— Maior que a Piedade, é a Justiça:
O Pombo, ora tomado de coragem,
Toma o posto de herói, larga o de pajem,
E, voando sobre o Abutre desarmado,
Calcula a mira e, havendo-a calculado,
Aos ventos grita: "Cósmica Garrucha!",
E o acerta em cheio, o Abutre se estrebucha
Num só disparo feito contra o imigo,
E é finda a guerra e posto seu jazigo.
E assim o herói Pavão e mais o Pombo,
Mortíferos, somaram-se num combo.
O que aprendemos disto? Um truque ou dois:
Que a Justiça não fica pra depois;
Que o fraco, se exaurido a ferro e fogo,
As peças tomba, e o tabuleiro e o jogo;
Quando o ensino não é libertador,
Sonha o oprimido em ser seu opressor,
E que o destino a cada coração
Reserva o Pombo, o Abutre ou o Pavão.
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