Paraíso Perdido (Tradução de Caio Silas)

1 Sobre o primeiro pecado de Adão e também sobre o fruto,

Originário dum caule interdito, mortal, cujo gosto

Trouxe-nos degradação sobre a carne e a angústia de espírito

Quando o baniu do seu Éden, até que O maior dos nascidos

5 Venha e recobre este posto de júbilo que antes gozávamos.

Canta-me, ó musa celeste, estes todos segredos distados,

Lá pelo topo do Oreb, quem sabe o Sinai; inspiraste

Àquele guia primevo que a prole escolhida ensinou

Sobre os primórdios, de como ocorreu de o planeta e do cosmos

10 Desentranharem-se juntos do caos; mas se acaso te enlevam

Os altos montes de Sião e os ribeiros de Síloe que fluem,

Rapidamente no orác’lo de Deus, donde seja eu te invoco

Pelo favor de apoiar este cântico meu, arrojado,

Antagonista a modéstias, que em voo passar eu intento

15 Por muito além das alturas das Aônias montanhas, querendo

Galgar inéditos feitos, quer seja que em rima ou em prosa.

E especialmente conclamo-te, Espírito Santo de Deus

Vós desejais retidão no meu peito ao invés das riquezas;

Peço, ensinai-me as palavras, pois desde o princípio até agora

20 Vós estivestes pairando no topo com asas potentes,

Símile à pomba puseste semente no abismo insondável;

O impregnastes, portanto, suplico, luzi-me os mistérios

E o que de mim seja baixo sustende-o também para o alto,

Para que o peso tenaz deste meu testemunho elevado

25 Possa atestar a vontade de Deus, Providência indelével,

E para o homem legítimas sejam as vossas maneiras.

Dizei-mo logo – pois nem os Empíreos te são sigilosos,

Nem mesmo o fundo do inferno -, dizei-mo, portanto, qual causa

Incentivou nossos pais tão queridos, em graça tão plenos,

30 Favorecidos como eram, bem-quistos nos céus, a tombarem

Perante o Eterno-Criador, transgredindo seu único mando,

Mesmo que o resto do mundo em suas mãos lhes tivesse entregado.

Quem por primeiro os lançou o feitiço da vil rebeldia?

Certo que foi a serpente satânica, ébria de inveja.

35 Encegueirado à desforra, valeu-se de astúcia iludindo

A genitora dos povos, no tempo em que o fez seu orgulho

Ser atirado do cume dos céus ajuntado às milícias

De anjos rebeldes, por quem o auxílio do plano lhe vinha,

Para exceder-se aos iguais muitas vezes na glória e renome.

40 E tendo crido em poder igualar-se ao Senhor-dos-exércitos

Caso entre os dois incitasse peleja, arrojou-se faminto

Contra o reinado de Deus, almejando de todo o seu sólio,

Fez-lhe uma guerra blasfema nos céus, batalhou aguerrido.

Fê-lo, entretanto, debalde, pois Deus poderoso o lançou

45 Com toda força nos ares, queimando, bem longe do empíreo,

Para sofrer a indizível desgraça de em brasas cair

Na perdição irremível, a fim de que nela ele habite,

Sob grilhões de brilhantes, além do castigo das chamas,

Quem se atreveu a co’ Onipotente medir-se em batalha.

50 Por nove vezes o espaço de tempo da noite e do dia,

Ele com seus tenebrosos sequazes jazeu derrotado

Dentro dum golfo de fogo, a rolarem deitados e vagos,

Muito apesar de imortais, para que se lhes guarde o castigo.

Mas por agora lhe cabe uma dupla apreensão e mais nada:

55 De a alegria perder e sofrer uma dor duradoura.

Tanto tormento lhe faz revirar as retinas nas órbitas,

Testemunhara a maior das angústias e, assim, consternou-se,

Duma só vez, revirara-se em ódio e desprezo inflexíveis,

Porquanto vira, à clareza e limite da vista dos anjos,

60 Um panorama infernal de barbárie e desgraça à sua frente;

Um calabouço terrível, por todos os lados premido,

Como uma grande fornalha queimando, a despeito das chamas

Sem produzir qualquer luz, só gerarem apenas caligem,

Para não mais descobrir que o cenário de angústia iminente.

65 Terras de dor e plangência, sombrias matizes sem paz,

Desabitada de esp’rança, que a todos, porém, sempre habita,

Onde o sossego não mora, mas firmes martírios dominam,

Sempre atiçadas de fogo, que vem em dilúvio constante,

Cujo (explosão) sustento, de (com) enxofre, também só se mostra

indelével.

70 Este lugar de justiça perene lhes foi preparado,

Tais rebelados aqui provarão a cadeia devida,

Tendo o quinhão definido nas trevas completas, sem parte

Nenhuma mais com quem fora seu Deus ou co’a luz dos empíreos,

Antes distados três vezes o marco do centro aos seus polos.

75 Oh, quão insólita plaga a despeito da que eles caíram!

Lá sem demora descobre os consócios da queda vencidos,

Sobrepujados na enchente de fogo que gira em tormenta;

Em rebuliço ao seu lado vagueia, entornado nas chamas,

Um que em potência e no crime por pouco também não lhe iguala,

80 Mui conhecido e de nome devido à região palestina:

O Belzebu, para quem o inimigo supremo dos céus,

Por Satanás conhecido, quebrando o nefasto silêncio,

Rompe a falar-lhe atrevido, lançando-o palavras duríssimas:

“Será possível, sois vós? Mas que queda do que éreis outrora!

85 Vi-vos vagar tão feliz nos domínios da luz sob trajes

Cujo esplendor transcendente ofuscou com seu brilho miríades.

Que cintilância! Se outrora estivemos no mesmo partido,

Relacionados por planos, consenso e até na esperança –

Risco igualmente assumimos na empresa sem dúvidas lauta –,

90 Uma vez mais nos enleamos, contudo, a miséria tem sido

Quem arruinara-nos juntos na fossa em que agora vós vedes.

Oh, que debacle tão alto! Que vasta potência em Seus raios!

Quem quereria prová-los ainda ou quem mais saberia

Todo o poder que nutriam, terríveis qual foram seus braços!

95 Mas não serão eles mesmos, tampouco o furor do glorioso,

Razões de minha mudança ou sopeso forçando ameaças.

Inda que tenha o meu brilho mudado, restou renitência,

Desprezarei sem medidas, porquanto em valor me ultrajaram,

Posto ser essa a razão da contenda entre mim e o Eterno

100 E que outros mais sublevou, à discórdia feroz arranjando:

Inumeráveis falanges de espíritos prontos às armas

Repudiaram Seu reino e ousaram a mim preferir,

Seu poderio incontável peitaram com força adversa,

Numa batalha insegura através das campinas celestes.

105 Mas que importa perder se abalamo-lo o trono inconteste?

Nem tudo fora perdido, atentai à vontade inquebrável,

À refletida revanche e o rancor imortal que teremos,

Mais a coragem de nunca ceder sujeitando-se a Ele.

E o que mais há pra tirarmo-lo o gosto em pisar na vitória?

110 O de os poderes e as iras que venham jamais a vaidade

Minha extorquirem. Curvar-se implorando-O por sua anistia,

Idolatrar seu poder e de joelhos cair suplicante?

Quem justo há pouco causara-o terror, pela força do braço,

De o seu império perder? Que vileza seria deveras!

115 Eis a vergonha tão mais ultrajante que a nossa derrota!

Devido ao fato de as forças legadas às hostes divinas

E a substância em seus corpos celestes jamais extinguir-se;

Devido ao fato de o ensino colhido no lauto ocorrido

Nos antever que se adiante empregarmos esforço possante

120 Muita esperança teríamos no êxito ao nosso propósito,

De empreender jugo eterno, batalhas de pura malícia

Sem nunca trégua, sem pausa, a quem temos por grande oponente,

Posto que, agora triunfante, ufana-se em gozo, a reinar

Unicamente, em sustento da vil ditadura celeste.”

125 Assim falou, apesar de sua dor, em alarde tão alto

O querubim, mesmo assim agonia o moía bastante,

E replicou-lhe igualmente e bem rápido o sócio atrevido:

Ó principado, de muitos poderes supremos és chefe!

Tu lideraste à batalha nos céus serafins revoltados,

130 Sugestionados por ti tão-somente e que em feitos medonhos

Sem medo algum ameaçaram o império perpétuo do Rei,

Pondo-o à prova a potência, que sempre se disse mais alta,

Fosse qual fosse o bastião, se por força, destino ou acaso.

Tão bem eu vejo, enlutado, o que houvera entre nós, tão terrível!

135 Aquela suja derrota e, também, a amargura da queda,

Ambas os campos elísios nos tomam e mais nos causaram,

Vindo a deitar-nos assim, potentíssima tropa, em desgraça,

Quanto possível de ruína a celestes essências e deuses,

Posto que espírito e mente, jamais perecendo, perduram

140 Indestrutíveis, e então sem demora o vigor nos retorna,

Muito apesar da extinção do esplendor e da graça, pois tudo,

Tudo se foi afundado no poço de eterna miséria!

Mas e se o nosso carrasco, que agora não posso esnobar,

Dado o poder revelado entre nós de suas mãos poderosas,

145 Às quais não menos credito à potência que as nossas vencer;

Mas se ele mesmo nos tenha poupado o vigor e a consciência,

A fim de as penas pujantes podermos sofrer sem findar-nos

E assim saciarmo-lo, em todo o clamor de vingança à sua ira?

Ou, ademais, quereria nos pôr como escravos em jugo,

150 Pelo quinhão da batalha, qualquer que lhe seja o desígnio,

Aqui neste Orco profundo, no fogo e prestando serviços

Sejam também seus caprichos, a nós reservados nas trevas.

Que valerá, pois, agora, sentir como outrora e manter

Força infinita ou a essência imortal? Qual proveito, portanto,

155 Se nosso fado é sofrer e servir pelos séc’los dos séc’los?”

Ao que, as palavras, lhe torna bem rápido o arquidemônio:

“Anjo arruinado, decerto é tormento saber-se impotente,

Mas não te enganes com tal impotência, pois tenhas por certo,

Nunca à bondade, menor que ela seja, cumprirmos demanda,

160 Antes gozemos pra sempre o prazer da exclusiva maldade,

Dessa maneira às vontades soberbas seremos avessos.

Se por acaso a, de Deus, Providência, à qual nós resistimos,

Queira tragar da malícia conosco propósitos bons,

Nosso labor tem de ser pervertê-los, a fim de que possa

165 Sempre a desgraça colher do que em boa-vontade propôs-se,

Tantas quais sejam as vezes possíveis, talvez essa feita

Afligi-lo-á, creio eu, nos intentos em si mais secretos,

Para causar confusão, malfadá-lo a vontade querida.

Vê, todavia, o furor com que exclama o campeão da peleja

170 Pra seus ministros ultores, em caça, aos portões retornarem!

Voltam-se, pois, aos empíreos; vê mais que os projeteis em brasa,

Caídos em nós como chuva, fenecem e deita-se abaixo

Aquela língua de fogo que a nós expeliu o buraco,

Desde os empíreos, na queda! Repara também no trovão:

175 Antes alado com rubro relâmpago e fúria impetuosa,

Talvez de vez esgotara o estoque de setas nervosas,

Nem se ouve mais um reboo ecoar no profundo infinito.

Aproveitemos a chance, quer seja o desprezo ou, quem sabe,

Tenha o rival satisfeito os impulsos de raiva e as cessado.

180 Tu reparaste a tristonha, deserta e baldia planície –

Desolação manifesta, despida de todo clarão,

Salvo o vislumbre daquelas esquálidas chamas adiante,

Moldes tão fracos, conquanto sinistros –? Planemos pra lá!

Bem para longe das chamas que as vagas marulham revoltas,

185 Lá descansemos se algum aconchego de paz for possível,

E remontemos por lá os poderes em nós abatidos,

Deliberando as maneiras prospectas de ao nosso inimigo

Mais afrontar; nossos próprios fracassos poder reparar;

Como também contornar o desastre terrível de agora

190 E o que possamos a mais expectar pra reforço do ânimo,

Caso contrário escolhamos ações extremadas de angústia.”

Disse-lhe assim Satanás, cuja face altanada aos marulhos

Muito abeirava o parceiro, a saber: Belzebu, o segundo,

Em seu olhar labaredas piscaram, ao passo que o corpo,

195 Bem debruçado à maré, estendia-se ao longo e ao largo

De imensuráveis medidas, boiando em volumes enormes,

Tal qual diziam as fáb’las do porte de monstros-colossos,

Que a Zeus levaram batalha, titãs, os nascidos de Gaia:

Tifeu, mantido enjaulado na cova ancestral lá de Tarso

200 E o gigantesco Briareu, sem falar na criatura marinha:

Dentre os prodígios de Deus, o maior engendrado nos mares:

O Leviatã que navega grandioso no fluxo do pélago,

Ele a dormir bem tranquilo na espuma do mar norueguês,

Onde pilotos vagantes da noite em pequenas chalupas

205 Julgam-no ilha, segundo as histórias dos próprios marujos:

“De âncora fixa em sua casca escamosa – frequente eles narram –

Põe-se de lado atracando-se contra a investida dos ventos,

Enquanto a noite, encobrindo o oceano, a manhã vai tardando.”

Tão esticado em tamanho era assim o demônio supremo,

210 Acorrentado no lago de fogo, razão pela qual

Nunca teria a cabeça, ou sequer qualquer membro, movido

Caso a vontade e o favor lá dos céus não houvessem querido

Abandoná-lo a seus próprios desígnios imundos de trevas,

Acumulando-se crimes, de modo a poder por si mesmo

215 Todo em desgraça afundar-se e, querendo aplicar de maldade,

Contra os demais, possa ver, revirando-se em sanha combusta

Como a malícia que aos outros quisera se torna bondade,

Misericórdia e favor infinito mostrados do eterno

Àquele ser por sua verve enganado, à medida que a si

220 Só confusão adensada, furor e clamor de vingança.

Sem hesitar ele apruma-se, alçando pra fora do lago,

Todo o seu corpo imponente, que em cada das mãos vem trazendo

Chamas revoltas (lançadas pra trás suscitaram pináculos,

Torvelinharam-se e um vale nefasto moldaram no lago).

225 Ato contínuo, pra o alto projeta-se de asas abertas,

Libra-se no ar de matiz pardacenta, sustendo-se em voo,

Dobra-se o ar, que estrugiu, até que ele pousou sobre a terra.

Chãos fluoresciam conforme cozessem por baixo com fogo,

Mas duro fogo, análogo ao lago, onde a chama era líquida;

230 Ali assomou numa forma de igual para igual em poder

Às ventanias rasantes, capazes de um monte rasgar,

Desde o Peloro o movendo, a rojar-lhe em moção pelos ares,

Ou o rasgando das beiras do grande vulcão da Sicília,

Esse em que o ventre borbulha de gases, que o atiçam as chamas,

235 Gases formados da fúria das rochas debaixo da terra,

Ei-las ao ar, sublimadas, pousando no chão: já se empedram,

Lastram-no então de fumaça, que empesta o entorno de inhaca.

Pousam, Satã e seu par, sobre os pés que tornaram malditos,

Ambos em glória ufanando-se em ter escapado do Estige,

240 Criam-se deuses, libertos no próprio poder, recobrado,

Não pelo crivo divino, que os deu, em verdade, aquiescência.

“Este é o lugar, este é o chão, vê também este entorno daqui –

Disse-lhe o arcanjo perdido –, este aqui nos será o fundamento

Que hemos de ter pelos céus, estas vastas e tétricas trevas?

245 Nós lhes teremos em troca dos vivos fulgores celestes?

Seja-o então! Uma vez que o monarca dispõe e comanda

Tudo o que queira; melhor é distá-lo tão quanto lhe possa

Quem lhe igualou na razão e na força ao tornar-se supremo,

Sobrepujou aos iguais. Despedimo-nos belas campinas,

250 Habitações de bonança perene, e digamos salvai!

Salvai inferno profundo de horrores e vós, grandioso Hades.

Vós recebeis a novel monarquia daquele que traz

Irredutíveis ideias, imunes a tempo e a lugar,

Mente em que habita e que faz dela própria morada de si,

255 Tendo o condão de a mudar, seja em céu, seja em inferno, à

vontade.

Que importará o lugar se eu ainda mantenho-me o mesmo

Ou, ademais, meu papel, desde que eu não menor venha a ser

Que aquele a quem os trovões concederam grandeza maior?

Cá nós seremos ao menos libertos da inveja divina,

260 Pois lugar tal não lhe importa e, portanto, daqui não nos tira.

Nós reinaremos seguros aqui, e de meu parecer:

Vale é reinar, nem que seja a ambição de reinar o submundo:

Vale é reinar neste inferno, bem mais que servirmos nos céus.

Mas, doravante, por que os companheiros honestos a nós,

265 Relacionados à luta e do mesmo revés compartindo,

Hemos de assim esquecer, aturdidos no lago em que jazem

Sem convidá-los a juntos de nós partilharem a sina?

Nesse infeliz casarão porventura uma vez mais possamos

Força conjunta empenhar à vontade de um dia reavermos

270 Nossa morada celeste ou senão neste inferno arruinarmo-nos.”

Foi-lhe, destarte, o falar de Satã, a quem diz Belzebu:

“Oh, liderança de todas as nossas armadas brilhantes,

Fora de Deus não há um que te possa frustrar na peleja,

Bastar-lhes-ia falar uma vez, e a esperança mais vívida

275 Motivaria o penhor contra todos os medos e danos!

Tu outras vezes falou-lhes com verve no fio da navalha,

Quando o combate em seus lances urgia e tornava-se fero,

Seguramente tua ordem irá renová-los de pronto

Novo vigor à bravura, malgrado jazerem agora

280 Rente à piscina de fogo, movendo-se em rojo, prostrados,

Tal qual há pouco nós mesmos jazíamos, tontos e atônitos,

Nada a admirar, haja vista o perigo de tão grande queda”.

Quando cessou de falar, Satanás, o demônio supremo,

Já avançava pra margem em posse do escudo encorpado

285 Forjado à pura energia, de grande extensão circular;

Circunferência tão vasta pairava-lhe ao ombro, qual lua,

Que, trás de si e lavrada em seu flanco, gravita-o redonda,

Como a que vê através dum visor o artista toscano,

Postado ao topo de Fésole enquanto no fecho da tarde

290 Segue a visar bem dali, ou então de Valdarno, à procura

Doutras paragens, montanhas e rios nos enredos da lua.

Fosse a mais alta das pinhas talhada na vasta Noruega

Feita depois no maior dentre os mastros de toda a marinha

Ante a sua lança empunhada no braço seria um graveto,

295 Junto da qual, sob o peso, em vagar palmilhava na estrada;

Sob o calcário cozido seus passos em nada lembravam

As caminhadas nos índigos céus, já que o tórrido clima

Muito inflamou-lhe as feridas devido à redoma de fogo.

Ele ainda assim perdurou no completo trajeto à enseada,

300 Onde defronte das águas em brasa postou-se, a chamar

Pelas suas tropas divinas que ali pereciam às tontas,

Feito as folhagens de outono, espalhando-se ao curso das águas

Pela região Vallombrosa, lugar em que as sombras de Etrusco

Içam-se em lautas arcadas; ou juncos esparsam-se à tona,

305 Quando as ferozes borrascas nutridas por luzes em Órion

Exasperam as ondas na costa do mar de águas rubras,

Cuja torrente engoliu faraó e a feroz comitiva,

Junto da qual perseguia, de peito enrijado, em perfídia,

Os peregrinos de Gassem que, sob os amparos da terra,

310 Viram-lhe serem varridos na força das águas, aos montes:

Rodas partidas de bigas e corpos sem vida nenhuma

Jaziam podres e soltos, acima do espelho das águas,

Enquanto aqueles se assombram em ver tão terrível virada.

Ele os bradou, estentóreo, de modo a abalar todo o inferno:

315 “Oh, principados guerreiros, agora no fosso mais fundo,

Vós, potestades tão belas de um céu que vos fora tomado,

Pode apossar-se o maior dos espantos de essências eternas

Ou porventura escolherdes adrede um lugar que lhes possa

Pós a dureza do prélio servir de repouso à virtude

320 Já tanto gasta e, portanto, lembrardes dos vales celestes

Neste tamanho torpor, que aqui mesmo encontrais facilmente?

Ou por acaso essa vil atitude denota a promessa

De vos prostrardes ao déspota mor, contemplando-os agora,

Vós, querubins, serafins, afogando-se em vagas de fogo

325 De braços soltos, ao alto, empunhando as insígnias de guerra,

Té que talvez os velozes carrascos dos céus, percebendo-vos

Em desvantagem, descendam de sola e espezinhem-nos todos

Mais para o fundo; senão carregados com alta voltagem

Raios assestem de modo a empalar-nos no chão deste golfo.

330 Oh, despertai e ascendei-vos, senão afundai para sempre!”.

Envergonhou-os ouvir tais dizeres e em ânsia brotaram

Sob um milhão de asas vastas, abrindo-se feito os olheiros

Surpreendidos na ronda, porquanto dormissem relapsos,

Quando estremunham pasmados devido à ralhada do chefe.

335 Não que a razão lhe tivesse sumido em conjunto à prudência,

Ou deslembrassem do drama e as penas sofridas sarassem;

Teve, no entanto, o condão de os mover o chamado do líder

E inumeráveis seguiam-no como o potente cajado

Quando Moisés solevou-o, num dia tão torpe ao Egito,

340 Para trazer em chamado uma escura torrente de insetos,

Cuja rajada rasgou as camadas de vento do leste,

Sobrepujou faraó, como noite, ao cobrir-lhe os domínios,

E em todo cerco do Nilo não houve senão turvamento:

Tal foi o número infindo dos anjos das trevas surgidos,

345 Pairando de asas abertas debaixo da copa do inferno,

Fogo lhes ia cercando de cima, de baixo e dos lados,

Té lhes mandar um sinal Satanás, empunhando a sua lança.

Num movimento ordenou-lhes o curso, e o enxame terrível,

Direcionando-se à marca, aterrissa em total harmonia.

350 O duro enxofre sumiu a seus pés, pós tomarem o plaino;

Grande o tropel, como nunca se viu nas paragens do norte

Atravessar, populosas qual eram nos morros gelados

Reno e Danúbio durante a invasão de seus filhos selvagens

Que, qual dilúvio, romperam ao sul e em seguida espalharam-se

355 Do promontório tarique às areias douradas da Líbia.

Cada esquadrão e milícia do bando de pronto remete

Um general, que açodado encaminha-se ao grão-marechal.

Põem-se a seu lado, divinas estirpes de pura elegância,

Formas excelsas, além das humanas, dignadas a tronos,

360 Onde assentavam-se outrora nos céus, exercendo poderes,

Mesmo que agora lhes tenham os nomes nas atas celestes

Eliminado, deixado no oblívio, de modo a que sejam,

Pelo motim desastroso, proscritos do livro da vida.

E muito menos os tinham perante os nascidos de Eva,

365 Té que em errância por sobre os domínios do mundo dos homens,

Autorizados da parte de Deus para pô-los à prova;

Por falsidades e embustes consigo os deitaram ao erro,

À decadência aliciaram as massas, que a Deus doravante

Abandonaram, e a glória inefável de seu fundador

370 Amesquinharam, trocaram-na em cópias, em rudes figuras,

Vezes sem conta, às quais se prostraram e deram-nas culto

Cheios de pompa, com ouro de oferta. E assim, pois, fizeram

Desses demônios deidades ornadas, às quais adoraram.

Por conseguinte, seus nomes variaram nas línguas dos homens

375 E, como tal, nas estátuas talhadas no mundo pagão.

Fala-me, ó musa, do primo ao postremo, seus nomes sabidos,

Eles que outrora jaziam prostrados num leito irascível,

Quando ao chamado do mestre se alçaram e em ordem de mérito

Veio, um a um, a seu rumo na costa vazia da praia

380 Enquanto o bando maléfico olhava-os, no entanto, à distância.

Junto ao mandante reuniram-se os vindos da cova infernal;

Perambulando à procura de espólios, altares ousaram

Pelo planeta fixar, abeirados aos templos de Deus;

E gerações sem medida os louvaram, tomando-os por deuses;

385 Tantas, que ousaram até mesmo a Deus emular, na blasfêmia

De arremeterem trovões sobre Sião à maneira de quando,

Entronizado entre dois querubins, excedia-se à arca ;

Vezes sem conta no Santo dos Santos puseram relíquias

Abomináveis, com práticas torpes mancharam-no a honra

390 Dos holocaustos e festas solenes, aos quais macularam,

Ousando a luz ofuscar com suas auras sombrias do inferno.

Primeiramente lhes veio Moloque, monarca sangrento ,

De cujo sangue imolado se banha, escutando os gemidos

Daqueles pais cujos filhos debalde imploravam chorando

395 Sob o troar inclemente das massas, batendo tambores

Ao lhes jogarem às chamas no ventre soturno da estátua.

Prestou-lhe culto em Rabá o Amonita, nos plainos molhados

Que vão de Argobe a Basã, propagando-se aos fluxos de Arnom;

E achando pouca insolência acercar-se dali tão-somente,

400 Veio a buscar apossar-se do peito do rei erudito,

Ou Salomão, a quem fez enganar-se por fraudes e alçar

Seu tabernáculo lauto, defronte ao palácio de Deus,

Sob a colina do opróbrio, e assim a ditosa campina

Entre montanhas, o vale de Enom, fez chamar-se tofete,

405 Ou Geena escura, lugar de holocaustos, a marca do inferno.

Veio em seguida Quemós, o devasso tirano de Moab,

A quem prestaram de Nebo a Aroer cerimônias e cultos,

Vastos domínios vertidos às dunas ao sul de Abarim,

Té Horonaim e Hesebon, pelo reino de Sião, e através

410 Da enflorescida baixada de Sibna, trajada de vinhas,

Vindo afinal rematarem-se às águas escuras de Eleale;

Quando à luxúria atraiu Israel, nomearam-no Peor,

Sugestionou-os, depois de marcharem do Nilo a Setim,

A cerimônias lascivas, remidas a custo de praga ;

415 Mas doravante é que alastra seus vis bacanais pelo mundo,

Mesmo à colina nefanda, onde jaz a campina do vale,

Na qual se imola a Moloque, atiçado no ardor da volúpia,

Té lhos varrer bem dali para o inferno o devoto Josias.

Juntam-se aos dois os chamados dos nomes Baalim e Astarote,

420 Esta que é fêmea e aquele que é macho repartem domínios

Desde as nascentes do Eufrates antigo às ribeiras que cortam

Os territórios do Egito e da Síria, apartados aos lados;

Interessante é que podem – se o querem fazer – tais espíritos

Modificar genitálias ou mesmo assumi-las conjuntas,

425 Dada a leveza volátil de suas essências primárias,

Desimpedidas das juntas e membros dos corpos humanos,

Tampouco alçadas, também, no vigor quebradiço dos ossos,

Antes alternam-se livres nas formas que bem escolherem:

Brilham ou cerram-se à sombra, invisíveis, expandem-se ou mínguam,

430 E se utilizam dos dons operando as vontades airosas,

Sejam caprichos de amor e paixão ou terríveis vinganças.

Abandonou Israel a seu Deus pelos dois muitas vezes,

Desocupando seus cultos de reta justiça e prostrando-se

A divindades incultas, perdendo o socorro presente ,

435 Razão por qual viu cabeças rolarem aos chãos nas batalhas,

Depois de a vil hasta imiga fincar-lhe a derrota na carne.

E como aos dois procurasse ajuntar-se em facção desde as tropas,

Aproximou-se Astorete, a quem chamam Astarte os fenícios,

Nobre senhora dos seus, em quem chifres destacam-se eretos,

440 A cujo brilho lavrado na imagem na face da lua,

Cantam-lhe odes as virgens sidônias, à paga de juras;

Nem é-lhe Sião indistinta, porquanto mantém-na santuários;

Sobre a montanha blasfema fizeram-na o templo por mando

Do pervertido monarca , virtuoso varão, mas que, entanto,

445 Lindas pagãs lhe flecharam e, então, sucumbiu a seus ídolos.

Detrás de si – Astorete – acompanha-a Tamuz, seu amante,

Este que as sírias meninas comove anualmente Líbano,

Pra lamentarem aos prantos, pungidas de dor, seu destino

Com amorosas cantigas entoadas à luz do verão,

450 Tempo em que Adônis gracioso atravessa o berçário de pedra

Rumo às correntes marinhas, vermelho qual sangue, a quem julgam

Correr do influxo da chaga em Tamuz, cujo canto de amor

Encegueirou as mocinhas de Sião, abrasando-as no cio,

De quem as árduas paixões presenciou pelos átrios sagrados

455 O são profeta Ezequiel, quando, em transe inspirado por Deus,

Examinou heresias infiéis da rebelde Judá.

Seguinte à fila de bestas, chegou o que a sério chorou

Ao ter consigo, cativa, a promessa de Deus feita em arca,

E ela em seguida cortar-lhe a cabeça no próprio santuário;

460 Ali jazeu o seu ídolo tosco, deitado de bruços,

Esparramou-se na borda do altar e vexou os seus crentes.

Este é Dagon, besta-fera marinha, cingido à cintura,

Debaixo é peixe, por cima ele é homem, possui, ademais,

Templo assentado em Azoto, de grande expressão e temido,

465 À beira-mar palestina, nos burgos de Gate e Ascalon,

Às cercanias extremas de Gaza e às fronteiras de Ecron.

Veio-lhe atrás quem mimaram no trono, Rimon de Damasco,

Deus do trovão, ofertaram-lhe leitos fecundos nos rios:

Foz cristalina de Abana e Farfar de regatos translúcidos;

470 À revelia do templo de Deus igualmente atreveu-se,

Um lazarento tomaram-lhe a preço de um bêbedo rei:

Conquistador de Damasco por mão dos assírios, Acaz,

Quem desonrou os altares de Deus e os depôs do santuário

Em troca doutros, iguais aos da Síria e acima dos quais

475 Pôs desprezíveis tributos no fogo e adorou bem ali

deuses outrora vencidos. Por fim, a tamanho cortejo,

Aproximou-se um tropel de renome, já bem conhecido:

Ísis e Osíris, seguidos por Hórus, depois pelo séquito;

Formas monstruosas, valeram-se do ímpeto crente do Egito

480 Para abusar-lhe em conjunto a seus padres e, assim, induzi-lo

À adoração desses deuses vagantes em formas bestiais.

Nem mesmo pôde Israel escapar do contágio sacrílego,

Quando à maneira do Egito, ajuntou o seu ouro e moldou

Um bezerrinho dourado na falda do Horeb, ou por outra:

485 Ao rebelar-se o seu rei, no pecado de Dã e Betel,

Representando num boi a pastar o divino Jeová,

Quem numa noite sangrenta ao marchar, em passagem no Egito,

Equacionou, num só golpe mortal, que ceifou duma vez,

Os primogênitos, junto às deidades egípcias que balem.

490 O último foi o demônio Belial, mais simplório e indecente,

Nem mesmo os céus lhe cuspiram, ou roja-se ao culto do vício

Só por capricho; nem mesmo há santuário erigido a seu nome,

Nem oblações, e, no entanto, quem mais há que habite nos templos

Ou tome parte no altar, quando ocorre de os sacros ministros,

495 Feito a semente de Eli, corromperem-se à dúvida e porem

Dentro da casa de Deus a luxúria, a extorsão e a descrença?

Sobre palácios e cortes domínio estendeu igualmente,

Bem como em urbes de mor perversão, nos quais sons de gemidos

Junto à arrogância e à ofensa, excedendo-se às mais altas torres,

500 Traz para fora a progênie devassa que, dentro da noite,

Põem-se a vagar pelas ruas manchadas de breu e caligem,

E as sobrevoa, tomada de empáfia, em pileques de vinho.

Testemunhou nos rincões de Sodoma e na noite em Gibeá,

Quando, acossados na porta, hospedeiro e visita expuseram

505 À violação uma esposa, pra assim evitar a do esposo.

Foram, portanto, os citados, em mérito e dons os maiores;

Quanto aos demais, tardaria citá-los, conquanto preclaros,

Os jônios deuses, primeiro julgados progênie javânica ,

Mas confessados depois como prole dos céus e da terra,

510 Seus lautos pais, de quem fora nascido primeiro Titã,

Vindo dos céus, destronado em seguida na vasta ascendência

Pelo mais jovem Saturno, a quem Jove, o seu filho e de Réia,

Dera-lhe a paga, igualmente, por ser, dentre os três, o mais forte;

Jove usurpou-lhe o reinado e primeiro exaltaram-no em Creta,

515 Ida e depois sobre o cume nevado do frio monte Olimpo;

Lá, apossou-se co’os seus da montanha e mandaram no ar médio,

Seus mais grandiosos domínios, senão sobre a délfica penha,

Ou em Dodona e por todos os termos do dórico ilhéu.

Houve também quem, pegado ao vetusto Saturno, arregou,

520 Voando em escape sobre Ádria, passando às planícies de Hespéria,

Té se espalharem à terra dos celtas e às mais ermas ilhas.

Arrebanharam-se ali todos esses – e mais! – com semblante

Desalentando-se em lágrimas, inda que nele um rumor

De alacridade desponte, por terem seu chefe revisto,

525 Não alquebrado de angústia, e por verem-se livres do peso

Da perdição sempiterna. No rosto, um rubor engessado

Fica a pairar como dúvida e, logo, Satã, denodado,

Toma a palavra e recobra-se em grande e tenaz oratória

Lauta em retórica, não em essência, sutil na intenção

530 De os animar a coragem perdida e evolar os seus medos.

Logo em seguida ordenou-lhes, qual som de batalha, tocarem

Grandes clarins e trombetas, a fim de que fosse altanado

Seu poderoso estandarte; e, clamando por tal honraria,

Veio-lhe à destra Azazel, querubim de maior estatura,

535 Quem sem demora o bordão luminoso segura e desfralda,

O distintivo imperial, que, elevado à maior das alturas,

Fulge à maneira dum grande cometa irrompendo nos ares,

Cheio de gemas e lustres dourados, lavrados a fogo,

Armas seráficas, taças riquíssimas, tudo isso enquanto

540 Vibram sonidos metálicos feito um cortejo de guerra

Aos quais a tropa abrangente de bestas levanta-se e arroja

Berro tão grave que a abóboda do Orco se parte e, alastrando-se,

Apavorou os domínios do caos e das trevas longevas.

Num só momento, através da celeuma, ascendem, quais chamas,

545 Dez mil bandeiras que varrem as trevas, alçadas ao vento,

Todas em cores do leste, enfunando-se, até que a elas juntam-se

Toda uma selva de picas enormes e eretas, conjuntas

A muitos elmos e bastos escudos em grossas fileiras

De profundez insondável, movendo-se em pressa e ao som

550 Da escala dórica, entoada nas doces canções duma avena;

Tal formação legionária em exímias fileiras alcança

Serenidade conforme a de heróis valorosos de outrora,

Estes que armados ao prélio se opõem a vê-lo com ira,

Antes firmeza inconcussa, prudência e bravura preferem

555 Contracenar contra o medo da morte ou, pior, retirada;

Não preferindo a fereza em favor de aplacar em reverso

Indecisões, expulsavam, ao som de tambores e brados,

Dúvida, angústia, desânimo, dor e temor, que acometem

Mentes humanas e eternas. E assim doravante estiveram

560 Numa só voz poderosa, aspirante de um mesmo propósito.

Movem-se em frente, calados, não fossem as suaves avenas

Que os aliviava o martírio de andar num terreno inflamado;

Súbito param, e à vista revela-se um quadro terrível,

Longo e medonho cortejo, de armada imponente, à maneira

565 Dos combatentes de outrora, munidos de escudo e de lança

À espera só de um comando do seu poderoso monarca:

Ele, ostentando o seu porte defronte às armadas em fila,

Põe-se a visá-las co’argúcia e de pronto consegue sondá-las:

Um batalhão ordenado, que viu por inteiro, em detalhes,

570 Rostos e portes distintos, iguais aos nos céus encontrados;

Contou a todos em número e agora palpita-lhe o peito,

Assoberbado de orgulho e fanático ao peso da glória,

Porque jamais, desde a origem de Adão, o primeiro dos homens,

Viu-se um poder manifesto igualar-se às suas hostes em fama.

575 Poder-lhes-ia igualar em valor os pequenos soldados

Que contra os grous batalharam? Malgrado ajuntassem a raça

Dos gigantescos em Flegra, somada aos heróis que lutaram

Dentre os conflitos de Tebas e de Ílion, cada um a seu lado,

Sendo ajudado por deuses; e mesmo os que entoam na fábula

580 Ou nos romances do filho de Uter, rei Arthur, o famoso,

Sobre guerreiros bretões assentando-se em távola esférica;

Inda que a todos, gentios e cristãos, ajuntassem daqueles

Competidores da branca montanha, castelo Aspromonte,

A Trebizonda de muitos torneios, Damasco e Marrocos,

585 Mais os que enviara Bizerta dos portos da terra africana,

Quando o pariato de Carlos, o magno, com ele tombou

Por Fontarábia; portanto, malgrado juntassem a todos

Esses poderes mortais poderiam à tropa igualar-se.

E mesmo assim a seu cris general observam por baixo,

590 Empertigando-se a eles em gestos de clara vaidade;

Como uma torre o visavam, porquanto quem em nada perdera

Da intensidade primeva em sua aura, tampouco demonstra

Menos que o brilho do arcanjo que, quedo, tomaram-lhe o excesso

De fulgurância, engolfada nas trevas, conforme o nascer

595 De um novo sol, abafado através duma capa de névoa,

Ou quando a lua o perpassa, talhando-lhe os raios dourados,

E a vaga luz dum eclipse derrama a nefasta penumbra

Sobre a metade dos povos da terra e a seus reis apavora

Quanto ao debacle de sua potestade. Mais quanto desdouro!

600 Inda que a todos o arcanjo supere no brilho, carrega

Marcas profundas que o raio do Eterno cravou na sua cara,

Que o tendo feito hesitante, marcado de puro cansaço,

Não lhe tiraram feições motivadas de orgulho e coragem.

Ébrio à desforra, seus olhos brutais não resistem à cena

605 De os seus iguais em delito mirar a despeito de outrora

(Outras feições de bonança), comovem-se ao brilho de lágrimas ,

Posto que agora os que a ele escolheram seguir condenaram-se

À eternidade de dor, doravante a sanção partilharem.

Milhões de espíritos pelo seu crime nos céus apenados,

610 Lançados fora da graça pra sempre devido à revolta

Sua e, no entanto, enrijecem-se em ser-lhe constantes à glória,

Que nem emana, conforme os carvalhos e pinhas dos morros,

Quando as rajadas de fogo que descem dos céus os devoram

E as copas nuas avante edificam-se à larga, crestadas,

615 Caule e ramagens cinzentas. Prepara-lhes, ele, o discurso,

Pelo que em dupla fileira eles todos se aprumam ao cerco,

Asa por asa abeiraram-no em linhas convexas, à espera,

Hirtos, calados, em toda atenção dedicada a seu par.

Três vezes tenta falar e três vezes despreza-se em culpa,

620 Lágrimas rolam-lhe a face divina, irrompendo em cachões

Té que as palavras, contidas por altos soluços desatam:

“Oh multidão de perenes essências, ouvi potentados!

Vós sois invictos, não fosse a derrota perante o Criador,

Em nada inglória, apesar de segui-la este estrago terrível,

625 Arrasador, ao qual este lugar no-lo pinta à lembrança,

Tão detestável que só mencioná-lo me insufla rancor.

Mas que intelecto, ao sondar os mistérios profundos do tempo,

Anteveria impensável cenário, passando a temê-lo,

De o nosso excelso e divino poder em conjunto, tal qual

630 Nesse momento se encontra, pudesse sofrer tanto estrago?

Mas quem também poderia pensar que, apesar da derrota,

Todo esse corpo possante de tropas banidas ao ermo,

Cujos empíreos cuspiram abaixo, ousará pelo esforço

Reascender pós a queda e tomar os espaços nativos?

635 Sejam-me, a mim, testemunhas as hostes inteiras nos céus,

Se alguma vez diferentes ideias ou risco evitado

De minha parte arruinou-nos a fé. Entretanto, o que reina

Na monarquia celeste, até então conservava-se pleno,

Sobre o seu trono assentava e sustinha-se à luz dos costumes,

640 Convencionara-nos a consenti-lo em sua régia premissa,

À qual enchia de pompas sem nunca poder revelar,

Pelo que a nós incitou revelia e urdiu-nos a queda.

Daqui por diante os poderes ao menos estão sopesados,

A fim de não provocarmos, tampouco temermos batalha;

645 Consistirá no seguinte a melhor estratégia a adotarmos:

Sempre operar à sorrelfa, mediante a tramoia e o ardil,

Meios supernos à força e que o hão de, por nós, ensinar

Dura lição, à distância: que aquele que vence por força

Jamais ultima o rival, mas apenas o prostra um momento.

650 O espaço pode gerar novos mundos, dos quais já está cheio.

Houve nos céus um rumor d’Ele estar planejando faz tempo

Um novo mundo, onde então plantará uma nova semente,

Geração digna de graça, pra quem deverá estender

Equiparável favor ao dos filhos nascidos nos céus.

655 Mesmo que ao menos pra espiar, talvez venha a ser lá o primeiro

Ato explosivo de fúria, que importa se lá o que alhures?

Desde que o inferno profundo jamais nos contenha cativos,

Nós, celestiais potestades, tampouco, ofuscando-nos, venha

Muito atrasar-nos nas covas escuras. Olhai tais ideias,

660 Todas convergem num único fito: o de a paz ser loucura!

Quem quererá sujeitar-se ao tirano, quer seja em ideia?

Guerra e mais guerra! Quer seja às abertas ou por artimanhas!”

Ele os falou e, acedendo às palavras, saltaram ao vento

Mais de um milhão de punhais inflamados, sacados das coxas

665 Dos querubins poderosos, que a chama fortuita arrebata

Os derredores sombrios do inferno; enaltecem a sanha

Contra o altíssimo; as lanças seguras com força nas mãos:

Abalroavam-nas bem nos broqueis, atiçando a batalha,

Urrando acima do espaço, em visível injúria aos empíreos.

670 Perto dali existia uma serra, a que o topo horroroso

Fogo cuspia e rosnava fumaça; na inteira extensão

Brilha uma luz cintilante em sua crosta, sinal categórico

De que lhe houvesse no ventre, entranhados, por força do enxofre,

Vários minérios de ferro. Pra lá acorreu apressada

675 Vasta brigada, veloz em seu voo, à maneira dos bandos,

Que se antecipam munidos de pás e picões sobre as mãos,

A fim de em terras realengas primeiro escavarem redutos

Ou elevarem barreiras. Mamon conduziu-os avante;

Mamon foi dentre os demais sublevados da queda o mais torpe,

680 Visto que mesmo nos céus seus olhares, conjuntos à mente,

Sempre jaziam volvidos ao chão, para mais admirar

Os pavimentos suntuosos do empíreo, calcados em ouro,

Do que qualquer ocorrência sagrada ou bonança divina,

Manifestada em visão portentosa. Foi ele também

685 Quem por primeiro aliciara com ímpios conselhos os homens

A despojarem o centro do globo e sujarem as mãos

Com as entranhas da mãe, a quem próprios estripam: a Terra!

Em prol de escusas riquezas. Não tarda a, seguindo comando,

A tropa abrir sobre o monte brilhante uma imensa ferida,

690 Desenterrou-lhe pepitas preciosas, às quais não espanta

Desenvolverem-se n’Orco, pois lá faz o solo mais jus

A perdições de valor. Observai o que aqui se apresenta!

Ó, vós, mortais, que ufanados à vista das próprias criações,

Narrai pasmados Babel e os trabalhos do rei de Menfitas;

695 Aprendei como obeliscos maiores na altura e na forma

E poderosos conceitos artísticos são facilmente

Por condenados espíritos, numa só hora, excedidos:

Tudo que em séculos vossos de intensa e incessante labuta,

Feito por mãos incontáveis, jamais bastaria a moldar.

700 Próximo ao plaino apinhava-se, pronto em diversas falanges

(Que sob as quais escorriam torrentes de fogo fundido

Vindo vertidas do lago), segundo tropel de demônios;

Com portentosos prodígios fundiram minérios maciços,

Cada quinhão separando e o refugo das barras limpando;

705 Rapidamente outra malta diabólica forma nos chãos

Moldes variados, lançando-os metal derretido em travessas,

Que em anormal movimento forniu cada espaço das cavas,

Feito num órgão que um único sopro explosivo de vento

Toda uma fila de tubos insufla na prancha sonora.

710 Logo erigiu-se de dentro da terra um imenso edifício,

Desencravando-se qual um suspiro dotado de som –

Sons agradáveis em vozes de doces arranjos sinfônicos –

Alicerçado em pilastras, rodeadas, igual num santuário,

Que se dispunham conjuntas a dóricos postes, colmados

715 Com arquitraves douradas, lugar a que não carecia

Friso ou cornija, soberbas estátuas talhadas a pedra;

O seu telhado cunharam com ouro. Jamais em sua era

A Babilônia, tampouco o Egito, com Mênfis grandiosa,

Equiparou-se na glória à tamanha imponência, ao sagrar

720 Bel e Serápis, seus deuses, ou ao empossar seus monarcas,

Quando o conflito no Egito e na Assíria explodia, à porfia

Pela opulência e a luxúria. Elevou-se uma barra antes fixa,

Com seu tamanho soberbo mantinha-se diante das portas,

Ambas as folhas de bronze se abriram em larga medida;

725 À vista, então, descobriu-se amplamente a grandeza polida,

Bem aprumada, do piso; no topo do teto abaulado

Pendiam, por engenhosos feitiços, fileiras sem-fim

De lamparinas brilhantes e fachos de chama abrasada,

Alimentados com nafta e betume simulam as luzes

730 Vindas dos céus. Apresou-se a caterva de espíritos caídos,

Maravilhando-se à entrada do engenho, a que alguns glorificam,

Enquanto que outros louvavam o obreiro, perito em sua obra,

Mui reputado nos céus em razão de edifícios suntuosos,

Onde, em torreões, a nobreza dos anjos fixou residência,

735 Quais majestades assentam-se em tronos legados por Deus,

Quem lhes alçou a tamanho poder e lhes deu liderança,

Particionou-os em classes, às quais dividiu pelo brilho.

Nem foi seu nome inaudito, tampouco privado de altares,

No antigo reino da Grécia e nas terras latinas da Ausônia.

740 Lá os varões lhe chamavam de Múlciber, sobre a sua queda

Narravam contos, da fúria de Jove ao lançá-lo dos céus

Sobre as ameias translucidas, em precipício, tal queda

Durou a inteira manhã e depois estendeu-se ao crepúsculo

De um longo dia estival; e durante o declínio do sol

745 Despencou do alto do zênite como uma estrela cadente

Sobre a ilha egeia de Lemos: relatam-no dessa maneira;

Desacertados, pois Lúcifer, junto à insurreta quadrilha,

Muito antes disso tombou e de nada valeu-lhe o penhor

De alçar nos céus altas torres, tampouco ele pôde escapar

750 Pela ardilosa retórica, em vez disso foi de cabeça

Com seus comparsas ao tártaro, a fim de que lá trabalhassem.

Nesse entrementes, os núncios alados, a postos e às ordens

De um soberano poder, organizam terrível castigo,

E o estrugir de trombetas percorre e proclama entre as hostes

755 Uma imediata assembleia solene a ser posta em moção

No pandemônio, que agora se torna o mais alto bastião

De Satanás e seus pares: a quem conjurava em chamado

Por todo canto do inferno; nas lautas legiões ordenadas,

Seguindo a escala do mestre, adiantaram-se os mais valorosos

760 Com multidões de centenas, milhares em tropa e no encalço;

Logo inundaram o acesso aos portões e às demais avenidas,

Toda a amplitude do pátio, conquanto o espaçoso salão

(Como a planície adornada, onde os mais atrevidos campeões

Depondo as armas defronte o sultão, assentado em seu trono,

765 Lançam-no a afronta em pedido do mais renomado islamita

Para um combate mortal ou disputa de lança a cavalo)

Mais comportasse esse enxame, que, tanto no chão como no ar,

Avassalou-o com o som sibilante das asas batendo,

Como se fossem abelhas vernais, quando o sol sobre touro

770 Fá-las romper para fora do alveário em fervor juvenil;

Elas alternam-se às flores viçosas e à folha do orvalho;

Voam pra lá e pra cá, té pousarem na prancha aplanada,

Circunjacência firmada à cidade erigida com palhas,

Recém-ungida de aromas, arengam ali, em colóquios,

775 Planos de estado. Tal qual era vasto o tropel sobre os ares,

A formigar pelo espaço contíguo e estacar ante um fato!

Maravilharam-se, pasmos, de agora, a despeito de outrora

Serem mais bastos no porte que a prole assombrosa de Gaia,

Apequenarem-se a menos que anões e, na sala contígua,

780 Aglomerarem-se aos montes iguais as nações dos pigmeus

Extravasando-se em montes hindus ou aos elfos das fadas,

Cuja eclosão na novel madrugada através das florestas

Ou pelas fontes algum camponês vagabundo exaspera –

Sabe-se lá se ele o vê ou se sonha durante o esplendor:

785 Clarão de lua que rege o horizonte abeirando-se à terra,

Movimentando a sua pálida luz, sobre a qual riso e dança

Vertem-se ao som duma música afável que encanta os ouvidos;

E o camponês, com prazer e temor, sente o abalo no peito.

Portanto, assim os volúveis espíritos seus, colossais,

790 Portes mudaram em formas pequenas e ao longo da sala

Sobremaneira apinharam-se todos, sem conta, ao redor

Desta assembleia infernal. Mais à parte de todos os outros,

Inda que em mesma estatura os tivesse igualado aos demais,

Os serafins e, também, querubins de primeiro escalão

795 Mancomunavam-se, postos em glosas secretas e ariscas,

Sobre um milhar de cadeiras douradas os mil semideuses

Assoberbavam a sala. Depois de lacônica calma,

Lê-se a chamada e vigora o início do grande conselho.

gurudorock e John Milton
Enviado por gurudorock em 03/08/2020
Reeditado em 20/12/2020
Código do texto: T7025452
Classificação de conteúdo: seguro
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