O BEIJO DO POEMA
A poesia beijou minha boca
e disse: : há quem tem sede
e confunde
realidade, verdade e beleza.
Suspeitei sentido na sentença,
continuou: : se convencem
de que compram o que precisam
e não sabem o que lhes falta.
Minha boca sibilou resposta,
silenciei e ouvi: : dia e noite
procuram sem cessar
mas saciam sua sede
nas gotas do orvalho que escorrem
sobre o vidro da existência
sem notar a chuva que lhes sobrevêm.
Aquelas palavras, agora vejo,
eram do poema um beijo;
e aquele beijo ardia sem doer
porque a dor advinha do prazer
na consciência expandida,
embriagada da nobre presença da Poesia.
Então sôfrego retribui,
finalmente disse :: tens razão!
não tarda tudo evapora,
seremos orvalho a secar
em distantes logradouros.
A Poesia me sorriu, concordávamos
transubstanciados. Concordávamos
que o essencial está no disperso.
Basta permitir para notar, concordávamos.
Os sentidos distraídos tudo separaram
na vã tentativa de nomear para compreender,
compreender para dominar, dominar para perder
o que só a Poesia pôde um reunir. Concordávamos,
o essencial reside em finas camadas de ausência,
finas camadas de ausência inominável,
a revestir cada coisa e tudo. Concordávamos.
O que está refletido na superfície
é efeito do que abaixo e acima e entre
camadas da realidade confunde verdade e beleza.
Como se duas bocas pudessem
cantar enquanto se beijam
voltamos um para o outro
e entoamos um estranho dueto
de mil vozes num mantra;
era um manto, cobertura.
"chegou o tempo de reunir do homem os pedaços, chegou
o tempo de trazer o fragmentado ao templo da oração, chegou o tempo de aceitar e recitar velhas histórias, chegou
o tempo de fazer concordar o sujeito e verbo, chegou
o tempo em novíssima contemplação, chegou e finda."
*
*
Baltazar Gonçalves