Viagem (antologia pelo Jornal Sem Fronteiras)

Num encontro comigo, fitando um caminho torto sem nimbo, sem nada, eu comia uma maçã e lembrava-me do passado, onde loucuras e deleites floresciam agitados dentro de mim.

Fixando a fruta, eu admirava o seu interior, rico de polpa fresca de um vermelho-dourado. Pensava que possuir tudo aquilo impressionaria meus lábios ásperos que não entendiam minha boca incitar a vida daquele fruto.

Nesse frêmito, eu desejava o frescor daquela romã já transformado em carne e espírito alimentado por mim.

Alheia ao tempo, eu viajava no trem do passado, correndo nos trilhos do seu abismo em direção ao cósmico. Explosão.

Mas... e se o trem continua viajando? Eu trocaria de lugar?

Ou de estrada?

O melhor, para mim, é parar de pensar.

Não quero o vazio que me atropela e que me convida a uma viagem única, sem estrelas.

Se me afasto de mim?

É um risco de não morte.

A morte não existe. É luxo, pensava eu na primavera, quando vivia os delírios da vida, alçando como uma gaivota.

Nesse abismo de cor azul, eu mergulho em mim, com saudades de quando eu me tinha, esquecendo vírgulas nos decimais, namorando o rio enluarado rabiscando êxtase com dois esses, imaginando ser um musical do vento.

Cada dia novo no meu passado era uma viagem audaciosa, desorganizando a matéria visível e um fragmento da minha aura.

Assusto-me por não me aceitar plenamente e por correr no tempo atrás da minha nascente.

É uma viagem louca, em um nada profundo.

Agora, estou aqui como um prêmio. Exaurida porque mão sei o que fazer de mim.

Entre a lucidez e a loucura, gotas grossas de água caem do céu.

Vejo-me a soçobrar.

O silêncio da noite com seus fantasmas, o medo jocoso da morte rasteja em mim.

Com mil demônios no corpo e um coração no escuro,meu corpo não é mais o mesmo entre fugas e misturas.

Será que o mundo sabe que vivo? Ou somente os corvos noturnos? Preciso

construir o meu mundo de dentro, em sonhos, emoções e orações, perseguindo algo que nem mesmo sei, mas posso vê-lo e tocá-lo no meu inconsciente.

Meu tempo é insosso, não se reinventa. Vejo-o chegar e partir.

Esse é o ponto mais doloroso: a agudez da próxima viagem na chegada do segundo outono.

Gilda Freitas
Enviado por Gilda Freitas em 27/03/2016
Código do texto: T5586717
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