Fúria
Meus dedos sangram.
Estrangulei minha alma.
Uma nódoa ficou.
Uma nódoa no espelho.
Não sou eu.
Vês?
É o meu rosto nesta nódoa.
Eu fico irreconhecível a cada pulsar.
Vês meus ossos sob a pele?
Vão derreter como a cera de uma vela
E serei ainda mais irreconhecível.
Meus dedos sangram
E eu tento agarrar qualquer coisa que não está aqui
Eu tento me segurar
Eu tento não me deixar ir quando chamam
E me chamam o tempo todo
E eu tenho que ir
E então me torno duas
E não sei qual devo ser.
Meus dedos sangram porque arranquei minhas unhas
Porque arranquei minha pele
Porque arranquei o meu rosto
E eram meu único existir.
Eles me chamam
Dentro de mim.
Vês?
As palavras fraquejam
Diluem-se na insignificância disso tudo.
A palavra é inútil agora
Meu corpo também é inútil
Minha mente é inútil
Vês?
É vazio.
Um colapso.
Um tremor de terra ininterrupto.
É vazio e irreversível.
Escreverei com o sangue dos meus dedos
A biografia que não tive.
Sem palavra alguma
Mas com a matéria do corpo que tive
E que virou rastros de uma estrada que fui.
Porque é preciso não esquecer do próprio nome e do rosto e da história.
É preciso escrever antes que tudo se apague da memória.
É preciso me inventar a cada momento.
É preciso juntar a pele, os ossos e o sangue e construir um novo corpo.
Não sou eu através do espelho.
É vazio.
Eu estou adiante.
Muito além.
O espelho é um rastro.
Eu estou em outra estrada.