Ampulheta
AMPULHETA
há muitas gerações lembro do silêncio dos campos
de luzes de velas tremeluzindo aos ventos dos pampas
sou homem, sou mulher
fui criança, velha
morri mil mortes e renasci
venho mais uma vez sob o signo de minhas origens
trago nas veias o sangue ancestral de homens e mulheres
simples e honrados
trago em meu coração o grande amor ao homem e à natureza
carrego a desordem de mil vidas, de sofrimentos atávicos
olho-me e vejo na profundeza de meus olhos a dor de vidas passadas
tenho uma missão a cumprir
tenho nome e mente de mentes que não lembro
sob a luz azul de uma vela enxerguei-me velha, de outros tempos
jovem que já fui, meu corpo diz quem sou e não significa nada
carrego um passado todo o meu tempo
busco de todas as maneiras conhecer esta alma atormentada que me habita
busco a identidade perdida em ventanias e chuvas fustigando a terra
terra que cultivo e por onde andam, em perfeita harmonia, os bichos e onde dormem as pedras
vim em forma de água,
banhar com minhas lágrimas de solidão e tristeza o chão por onde caminho e nasce o mais puro pasto
não estou só neste momento. venho acompanhada de inúmeros mortos que carrego no sangue
meus traços são a mistura de homens e mulheres que amaram deus e a vida
anseio o encontro com a realidade material do corpo
traduzo meu espírito em carne, ossos e matéria
procuro dar forma às impressões do que vejo e sofro
busco meu complemento em corpo e alma
que pode ser o homem ou simplesmente a expressão de meus sentimentos mais puros, o amor e a minha pura alegria de estar viva
abandono minhas armas, desarmo minhas mãos suadas de ansiedade e medo
torno-me então, apenas a filha
pai, mãe e família
deixo de ser vegetal, mineral e animal. tenho minha própria alma
o tempo congela-se neste momento sublime de iluminação pessoal e intransferível
a ampulheta indica que escoa, mas em meu coração cristaliza o sempre, o eterno.