Bistrô
Não se passava
a qualquer momento ali.
Aquela rua era
escura
como o negro véu
que cobre
a madrugada aluada;
as casas eram
todas do
século passado,
com tijolos quebradiços
e uma penumbra de tinta
cobrindo algumas paredes
rachadas.
Aquela porta
de madeira amarga,
que protegia uma casa
humilde,
era aberta à tarde
por Alícia,
moça jovem
de olhos tristes.
Havia duas mesas
antiquadas e
descombinadas
com banquetas quebradas.
As tardes de frio eram
inspiradoras,
mas a voz do vento
era a única que
se ouvia
tocando as nuvens
bastante
nubladas.
O vazio
daquela rua
traduzia
o que as gotas
espelhadas
do céu
diziam
à moça
de lenço nas mãos
e chuva nos olhos.
Cantar era uma
paixão
bem
guardada no peito,
que irradiava nas
lágrimas
pelo amor
distante.
Seus filhos
não mais
tinham pai.
Os olhos dela
brilhavam
a cada vez
que recebia
notícias de seu
amado;
as crianças frequentemente
cantavam a saudade em
perguntas
insaciáveis
de onde o pai estava.
Ele estava longe,
honrando a bandeira azul,
branca,
vermelha.
Estava sendo a
pátria inteira.
Quando sol,
fazia escuro
naquela
rua
negra.
A cada semana,
a moça saía a
fazer compras
no outro bairro,
voltando com sacolas
de alguns ingredientes
para servir tira-gostos aos
clientes
escassos.
Todavia,
as compras ela fazia
às quartas-feiras,
não às
QUINTAS.
Por isso,
ao caminho,
encontrou
uma fachada
muralizada,
com alguns papéis rasgados,
que diziam:
"GRAND SPECTACLE:
Mardi, Théâtre des Champs-Élysées"
mas os tempos eram outros,
e a guerra não
trazia
espetáculos,
porém,
como nunca vira,
naquela fachada,
uma porta
aberta
avistou:
vozes líricas
ouviu
como ouvia
pássaros a
cantar.
A moça Alícia entrou,
recatada,
bateu palmas e,
quando se viu,
estava cercada
de mulheres observando-a,
vestidas sem
grande luxo,
mas
soberbas.
Um homem
sentado
se levantou
para ver quem
chegava.
Ela queria apenas
ouvir
o ensaio.
Indagou o
homem
o que
ela queria
e ouviu um sussurro
doce de vergonha,
consentiu
a presença e silenciou
em sua cadeira cansada.
Não quis ela sair
de si mesma,
sensata,
conhecendo-se
como uma
qualquer,
como ninguém
a conhecia.
As vozes
encantavam
em seus timbres,
ilustrando
a melodia
do violino
que extravasava
a arte poética
em suas cordas.
O balé ensaiava
cada passo
trazido por
cada peça
do enredo
da ópera,
e Alícia
pensava consigo
o quão incrível
era a
arte,
emocionada,
com
a alma na mão,
sentimental.
Ao fim,
pôs-se a
sair
sem que
fosse
notada
e
foi
fazer as
compras para
semanar
na sala
de sua casa,
servindo
ao ínfimo
público
que,
às vezes,
aparecia.
Não muito longe,
as bombas
ilustravam
o cenário de caos,
e a
Militärverwaltung in Frankreich
enegrecia
a França
numa nuvem
Nazista.
Então,
tragicamente,
a vontade
surgiu,
e Alícia voltou
ao ensaio
na quinta
seguinte,
quando
o homem
sentado
indagou
se ela
sabia
cantar.
Indo ao
centro da sala,
com postura imponente,
olhos ao chão
e coração debulhado,
lançou sua alma
aos tímpanos
absortos
que se faziam
presentes.
Seu registro
era soprano,
sua magia,
o sentimento.
A saudade
era a melodia
que embalava
seu cântico,
e a guerra
era o caos
que trazia em
sua mente.
Alguns presentes
choraram ao
ouvi-la e
a
aplaudiram
como se
ali estivesse
uma cantora
mundialmente
famosa.
Alícia
segurou seu
coração,
baixou os
olhos
e andou
até o canto
de onde saíra,
ainda ouvindo
aplausos
contundentes,
logo
buscou a saída,
envergonhada,
para voltar à sua
residência,
mas o homem
a chamou
e quis
conversar:
ela era
fabulosa.
Mas como poderia
cantar
sabendo
onde
seu marido
estava e
que sofrendo
poderia estar?
A negra cruz gamada,
Svastika,
exalava o poder
medonho
dos alemães
em terras francesas,
mas o brilho
nas retinas
sofridas
da moça
irradiava
sua insegura
paixão
pela arte.
Poderia cantar
e emocionar,
mas jamais
doaria sua alma
por completo:
ela estava
entrincheirada
a uma certa distância dali,
sendo bombardeada
noite
e dia.
Mas
o valor oferecido
gerava o desespero
de sua necessidade:
os negócios da
família não
se sustentavam.
Assim, nasceu a
Arte
Aliciana.
Todas as semanas,
comparecia
aos ensaios
e encantava
as almas que
se calavam para
ouvi-la.
As crianças se cuidavam
com a avó,
e os passos de Alícia
sumiam na multidão
dos artistas.
A apresentação
estava marcada:
mas Alícia não
se fazia
preparada,
pois ainda não
libertara
sua alma
taciturna
de seu peito
longínquo.
No camarim,
seu suor
manchava a
maquiagem
e suas cordas
vocais
quebravam as
barreiras
sonoras.
A noite era sua:
os brilhos,
os olhares,
os aplausos,
os sentimentos.
O cabaré
a esperava em
furor.
Entrou em cena,
controlou o respirar
e se debulhou em
sensibilidade.
O público estava ali,
latentemente
vibrante,
como se apreciassem
uma obra de arte
erudita
tomar
magnificamente
sua forma.
Mas o vazio em seu peito
a fazia pobre
em seu pensar.
Não poderia mais
cantar
daquele jeito.
O financiador
da noite não se conteve,
incisivo:
"Aquelas pessoas
haverão de retornar
para receberem a tua arte,
e tu tens de estar
conosco para oferecê-la.
Já és uma
estrela!"
Todavia,
repentinamente,
Alícia,
tão moça,
tornou-se
uma
inconsolável
viúva.
Seus prantos eram
ainda mais
frequentes,
e sua alma
tornara-se um vidro
estilhaçado,
lançando
cacos aos
ouvidos
nus.
Não se ouvia
soprano
mais
melancólico.
Não havia corpo,
Jean morrera
numa
trincheira,
desfalecendo em
putrefata
solidão.
Havia alma.
Imortal
na absoluta
imensidão.
Alícia pisou
novamente no palco,
tudo era noite:
sem brilhos,
sem olhares,
sem aplausos,
tantos sentimentos.
Com os olhos
tempestuosos,
cantou um pássaro
como nunca antes
cantara,
pois sabia que,
ali,
seu amado estava
apreciando a
libertação da primavera;
um arrepio a
envolveu
como um abraço,
e ela
sentiu o amor
que se fazia vivo,
manifesto na arte
que
calava o silêncio
de cada peito,
e a fazia cantar,
mesmo buscando
o silêncio
de seu
interminável
luar.
*Texto premiado com o 1º Lugar no II Concurso Literário Icoense Poeta José de Oliveira Neto, na categoria Poesia, promovido pelo município de Icó-CE.