GENGIBRE & MAIS

GENGIBRE I – 25 JUL 2014

A vida é assim, um mastigar constante,

até que os dentes caem ou o maxilar

cessa o seu movimento e, devagar,

a vida é mastigada em um só instante...

Gaia aceita o seu dom, santa e vibrante;

digere a luz do Sol, luz estelar,

deglute a luz da Noite, luz de luar

no-las devolve em seu verde exuberante.

As escravas de Gaia, as bactérias,

esses distrópicos seres matinais,

transformam rocha em húmus, bebem ar,

na sensatez das intenções mais sérias

que a Deusa-Terra nos induz, em primordiais

intenções da noosfera a partilhar.

GENGIBRE II

Sou noosfera nestes versos, nu

receptor passivo da paisagem,

um locutor fremente da miragem,

nada mais que um ponteiro de ormolu; (*)

e como eu sou, é assim que serás tu,

pastando meus poemas, luz de vagem

que se entreabre ao mastigar, imagem

do descanso final ao pé do umbu,

porque em poemas, vasto é o alimento

que distribuo à terra, em tom de enxofre

que as bactérias do olhar ligam à mente,

na pretensão que tenho de que o sustento

de minhas canções te tomará de chofre,

ao liberar qualquer ideal que te acalente...

(*) Relógio cuco em recipiente trabalhado.

GENGIBRE III

Queria até ser um bonequinho de Natal,

desses que fazem de gengibre com farinha,

em que um gosto diferente se entrelinha,

vindo da infância em recordação total

de avós e tias que me não queriam mal:

Maria Clara, que com histórias me entretinha,

Maria, a Avó, que em tábuas, linha a linha

cristalizava figos, em prática ancestral,

e Tia Lydia, que se atribuía o dever

de me levar todas as tardes o café,

algumas vezes esquecendo já cumprida

essa tarefa, outra bandeja a me trazer;

todas três agora moram noutra sé,

junto à minha mãe, no final desta avenida.

GENGIBRE IV

Só imagino se estão na noosfera

e algumas noites me vêm a sussurrar;

a cada ano lá eu vou para pagar

o aluguel dessa sua longa espera,

pois seu dormir tranquilidade gera...

Hoje sou eu mil histórias a narrar;

já não há figos para desfrutar,

vendeu-se a casa e moro noutra esfera;

e algo me impede até de as visitar,

em seus sacos de plástico encolhidas,

nenhum boneco de gengibre cozinhado;

não que lá as possa realmente reencontrar,

nem que receie as faces secas já queridas,

mas afinal, quem não é visto, não é lembrado!

CLERIGMAS I – 26 JUL 14

Por quanto tempo andarei por essas ruas,

a pisar sobre as marcas de meus passos?

A meus fantasmas não desejo dar abraços,

lá tiritando sob a luz de antigas luas!...

Caminho firme e vivo, mas as puas

desses olhares do passado, os mesmos traços

que nos espelhos vejo, ainda mais lassos

os de hoje que os das velhas formas nuas...

Meus eus de ontem, seguindo as mesmas trilhas,

só invisíveis na direta luz do Sol,

almas penadas são, da noite as filhas,

que simplesmente me contemplam, espantadas,

pares de olhares frios como um farol,

sem entender por que foram abandonadas...

CLERIGMAS II

Por clerigma se entende o sacerdócio

daqueles que só cantam nas igrejas,

sem que ordens religiosas neles vejas,

sem sacramentos ministrar, em puro ócio;

de um grande coro também podes ser um sócio,

sem que na vida monacal estejas;

na comunhão dos santos a ti ensejas,

sem precisares abandonar o teu negócio;

os mortos cantam nela e os nascituros,

à divindade em natural louvor,

com os que hoje vivem, em harmonia,

constante récita dos dogmas mais puros,

a cada instante da vida o seu clamor,

que assim reiteram em perfeita salmodia.

CLERIGMAS III

De forma idêntica, meus seres do passado

buscam em coro salmodiar comigo;

porém cantar com eles não consigo:

vendo os fantasmas, fico amargurado,

sem querer repetir o palmilhado;

nem sequer ao coração dou-lhes abrigo,

mas por eles atravesso, sem perigo,

pobres estigmas de meu caminho andado.

Eles me estendem os invisíveis braços,

embora apenas eu consiga vê-los,

quando meus olhos fecho nas calçadas...

Então tropeço e me apóio nos abraços

dos momentos vividos, sem mais tê-los,

e minhas sombras deixo atrás, abandonadas...

CLERIGMAS IV

Nem sei que coro poderíamos entoar,

pois minha voz foi mais forte antigamente,

bem empostada, em ambição crescente

de para mil plateias descantar...

Porém o fôlego perdi, ao repassar

os meus fracassos, igual que toda gente;

nem mais em casa eu canto alegremente:

quando começo, já fazem-me parar...

Como então encarar os meus fantasmas

que conservam, quiçá, a voz potente

com que o mundo enfrentei no meu antanho?

Porém me encaram, como figuras pasmas

ante meu passo firme e indiferente,

em falso orgulho, ocultando o meu acanho...

SELOS DE COURO I – 27 JUL 14

A cada vez que olho para o céu,

vejo nas nuvens o rosto de Avendago,

meu concebido e inconcebível mago,

a remexer sobre a Terra com arpéu...

Muito embora se esconda sob um véu,

o mundo inteiro ainda encara com afago:

quer os peixes a nadar em cada lago,

de cada flor ver o pólen sobre o léu...

Sempre gentil o velho feiticeiro:

trouxe Valfada como a mãe da primavera,

enquanto ele preside sobre o inverno,

legando para mim o outono inteiro

e para ti, quente verão à espera,

nesse escorrer dos anos, sempiterno...

SELOS DE COURO II

Avendago e Valfada são semblantes

refletidos em duas máscaras de couro

e sob o sol desfruto o meu tesouro:

em mim derramam sonhos delirantes,

que em redigir diariamente me demoro,

muitos banais, poucos interessantes,

mas de qualquer poder sempre pujantes:

dourada espiga em imitação de ouro...

Porque o ouro da espiga hoje devoro,

que roubou do astro-rei inteiramente,

do mesmo modo que igualmente furto o trigo

e de tal canibalismo em nada coro,

na certeza de devolver integralmente

toda a energia a que me corpo deu abrigo...

SELOS DE COURO III

Vejo em minhas salas vinte máscaras de couro

que minha esposa entronizou, em seu afã;

olhos vazados ou de expressão bem vã,

sobre algum rosto moldados, sem desdouro.

De olímpicas expressões guardam tesouro,

em seus esmaltes conservando a chã

esperança da ovelha por sua lã

esquilada há muito por comparsa mouro. (*)

Nada sobrou para barbas ou cabelos,

seus rostos totalmente escanhoados,

algumas vezes, talvez, ainda me acolhem

quando ali passo, sem notar seus selos,

antigos corpos totalmente descartados,

da natureza só a guardar traços de pólen...

(*) Grupos de tosadores especializados que percorriam as fazendas na época da tosquia.

SELOS DE COURO IV

Também sou pólen nas patas de uma abelha,

também sou alga nas vagas da procela,

que a natureza meu destino inteiro sela;

também sou máscara de couro que se espelha

em cada sussurrar que me aconselha...

Sou a lágrima a escorrer na face bela,

sou o pingente quando o telhado gela,

sou o vento a despentear cada guedelha

E em tudo me assemelho e me assimilo

a esse grande arranha-céu da ecologia:

sou alicerce, sou parede e sou antena;

um grão de areia no espasmo da harmonia

e por viver, a mim mesmo aniquilo

nesses selos de couro de minha pena...

TRAMA DO TEMPO I – 28 JUL 14

NO FINO PANO DO TEMPO

CORREM DIAS DE FUMAÇA

REJEITADOS PELA TRAÇA

DO FUTURO NO DESTEMPO.

DO TECIDO EM CONTRATEMPO

ELAS EVITAM DESGRAÇA

SÓ MASTIGAM DIA QUE PASSA

NA RAPIDEZ DO RETEMPO.

QUEIMAM HORAS DIARIAMENTE:

ONDE HÁ FUMAÇA, HÁ FUMAÇA:

FOI-SE O FOGO CLARAMENTE

APAGADA SOCIALMENTE

A PEQUENA CHAMA BAÇA

QUANDO A NOITE SE APRESENTE.

TRAMA DO TEMPO II

NO ESCURO PAÍS DO PANO

DESSE TEMPO ENTRETECIDO

CADA FIO É RECOLHIDO

EM PAPO DE PELICANO.

E O VELHO PROCESSO ARCANO,

TRANSFORMA TEU DIA PERDIDO

NESSE DIA ESCURECIDO

FEITO LUTO EM DESENGANO.

TODA A FUMAÇA DO DIA

E O FOGO QUE EVAPOROU

NUMA NOITE SE CONTRAI

E O TEMPO QUE SE PERDIA

O TEMPO QUE SE ESGOTOU

DO CREPE ESCURO NÃO SAI.

TRAMA DO TEMPO III

PORÉM NO PAÍS NOTURNO

SOPRA O FOGO DA ALVORADA

REDUZINDO A NOITE A NADA

QUAL NÉVOA NO AR SOTURNO.

SURGE O SOL COM SEU ALBURNO

QUEIMA A NOITE ENLUARADA

NESSA FUMAÇA DOURADA

DO NOVO PAÍS DIURNO.

QUEIMA NOITES DIARIAMENTE

A FUMAÇA DISPERSADA

CADA ESTRELA AMARGURADA

E MESMO A LUA SILENTE

QUE JÁ NÃO SE ENXERGA MAIS

NESSE ARCO-ÍRIS DO JAMAIS!

TRAMA DO TEMPO IV

MAS O TEMPO QUE EU GASTEI

DE TODOS ERA OU SÓ MEU?

CADA UM POSSUI O SEU

OU O TEMPO PERTENCE AO REI?

NO MOMENTO EM QUE ACORDEI

O MEU TEMPO SE ROMPEU

NO SONHO QUE SE ESQUECEU

OU NOVO TEMPO GANHEI?

É O TEMPO ENTÃO QUE NOS VENCE

OU É UM PRATO DEGUSTADO

NOSSAS VIDAS QUAL SALADA?

AFINAL, A QUEM PERTENCE

ESSE DIA REQUENTADO

EMPÓS NOITE FUZILADA?

TRAMA DO TEMPO V

ANTES TECIDO DE SEDA

ORA CREPE FUNERÁRIO,

DE NOITE O TECIDO VÁRIO

QUE ACUMULADO SE QUEDA.

TODA A LUZ QUE O DIA CEDA

EM SEU FULGOR OPERÁRIO

RECEBIDA EM RELICÁRIO:

FUMAÇA QUE A NOITE HOSPEDA!

E ONDE CABE TANTO PANO,

SE O PASSADO TERMINOU?

ONDE O FOGO SE AJUNTOU,

DESGASTADO SEU ENGANO

NESSE CONSTANTE TEAR,

NOSSAS VIDAS A FORMAR?

TRAMA DO TEMPO VI

DOBRA-SE O ORGANDI DO DIA

CONTRA A CAMURÇA DA NOITE

PILHA EMPILHADA EM AFOITE,

DOBRA DOBRADA SURGIA.

GRANDES ROLOS SEM VALIA,

PASSAM SÉCULOS DE AÇOITE,

AS MIL PEÇAS DESSE ACOITE

QUE LOJA QUE AS GUARDARIA?

OURO À SOMBRA SE ALTERNANDO

DO ANTANHO NESSE ARMAZÉM,

QUAL O ESPAÇO DO PORÉM?

QUAL A TRAMA DO ENTRETANTO

EM QUE AS LÁGRIMAS DO PRANTO

MIL SORRISOS VÃO MOFANDO?-

GERGELIM I – 29 JUL 14

A vida é como um bolo ou um pãozinho

Salpicado aqui e ali com gergelim;

A maior parte é simples polpa assim:

Prendem-se amores em qualquer cantinho

Ou há alegrias a polvilhar devagarinho;

Sementes tristes que não têm jardim,

Ser mordidas e engolidas o seu fim:

Essa erva-doce desviada do caminho...

A maior parte da vida é ramerrão,

Nosso alimento essa monotonia

De hábito e costume em profusão,

Enquanto amor é o bem que se queria,

Mas circunscrito em sua duração,

Qual as sementes que no pão se via...

GERGELIM II

No sonho encontro essa alegria do pão;

Doces sementes em mais doce falcatrua

Caem do invólucro, se espalham pela rua:

Quanta alegria que não chega ao coração!

Contudo o miolo, sob sua proteção

Se torna adocicado em sua mistura;

Empilha-se ao redor a sua doçura:

Mais doce a casca, por igual razão...

Há quem prefira tudo descascar,

Para comer unicamente o conteúdo:

No dia a dia, espalha-se a amargura;

Talvez a casca vá ao lixo perfumar,

Jogada, enfim, por sobre o chão desnudo,

Em que germina outra vez como erva pura!

GERGELIM III

E há quem prefira apenas essa casca,

Saboreando o flavor dessa doçura,

Sentindo em si, quiçá, maior ternura

Nesses momentos em que o perfume masca.

Qualquer semente é contada em cada lasca,

Melhor que em maciez que não perdura,

Porém azeda, após nova fervura,

Qual refeição adquirida em pobre tasca.

Pois certamente é melhor ter o perfume

Na polpa diária de tal monotonia,

Suas duas qualidades apreciando,

Antes que chegue ao pão seco azedume,

Mais ressecada ainda a casca fria,

Enquanto a vida se vai embolorando...

MULHER DA ALSÁCIA I – 30 JUL 14

TIVESSEM MEUS OLHOS ASAS,

COMO AS NUVENS DO HORIZONTE,

CONTEMPLANDO ALÉM DO MONTE,

PELAS PAREDES DAS CASAS,

SE AS JANELAS FOSSEM GAZAS

E A VENEZIANA ME APONTE,

SEM POSTIGO DAR DESCONTE

E AS DISTÂNCIAS FOSSEM RASAS,

OS OCEANOS ASSIM EU CRUZARIA

ATÉ O TERRITÓRIO DISPUTADO

E NO TEU LEITO TE ACHARIA, ENFIM

QUANDO TUA BOCA TE CONTEMPLARIA

IGUAL BOTÃO BALOUÇANDO NUM JARDIM,

NELA UM SORRISO COMO FLOR HASTEADO.

MULHER DA ALSÁCIA II

E SE TIVESSEM MINHAS ASAS OLHOS,

QUAL TEM A NOITE SEU MANTO DE ESTRELAS,

EU GALGARIA DE TEU VENTO AS SELAS

E DAS PRAIAS TRANSPORIA MIL ESCOLHOS

PARA ESCUTAR JUNTO A TI OS TEUS ARRULHOS

E OS RESSONARES DAS NARINAS BELAS

DE TEUS PULMÕES A EXPIRAR PROCELAS,

TODA DISTÂNCIA VENCENDO EM TAIS ESBULHOS.

E NOS TEUS OLHOS ENTÃO CONTEMPLARIA,

QUASE AFOGADO NA LACRIMAL GAROA,

QUAL ESPÍRITO QUE DO ANTANHO A TI RESSUMA

E ALI A ALMA INTEIRA BANHARIA,

NAS CONCÊNTRICAS MAROLAS DA LAGOA,

EM QUE VEJO UM SORRISO EM CADA ESPUMA.

MULHER DA ALSÁCIA Iii

E SE MEUS LÁBIOS PUDERA TRANSPORTAR

ATÉ ESSE PONTO QUE NUNCA CONHECI,

SUSSURRARIAM SOMENTE PARA TI,

NA PURA ASTÚCIA DE UM BEIJO A TE ROUBAR,

GENTIL O ESFORÇO DE NUNCA TE ACORDAR,

POIS SE ME VISSES, NÃO SERIA UM ROUBO ALI,

MAS REALIDADE QUE PARA TI NUTRI,

NO SENTIMENTO DE PODER-TE AMAR.

COMO UM FANTASMA DE ÂNSIA SOLITÁRIA

PELA MULHER QUE QUERIA E NUNCA TEVE

E A QUEM SEQUER SE ATREVEU A PROCURAR,

SALVO DE FORMA ASSAZ INORDINÁRIA,

QUAL UM ÍNCUBO QUE NO SONHO TEU ESTEVE

E NEM AO MENOS TE BUSCOU ACARICIAR!

IMBARACH I – 31 JUL 14

A morte é a mãe dileta do estertor,

que ataca os outros, num momento estranho:

só para nós se espera não viesse!

A vida é o lado oposto dessa cor,

suas raízes entrelaçadas em emaranho,

a salmodiar as linhas de igual prece!

Duas cabeças em um corpo, igual palor;

quando uma perde, a outra tem seu ganho

e a arcana litania se entretece...

Que a morte gera a vida e igual amor

sente a vida pela morte nesse banho

quadriculado que sobre a terra desce...

Presos na teia do ancestral sexor,

quais bactérias, aumentamos o rebanho,

maravilhados enquanto um filho cresce!...

IMBARACH II

Já ouvi falar nessa imortalidade

esperada através da descendência,

que é mais do sobrenome, em realidade.

Diz o Talmude, em sua originalidade,

que as almas dos avós têm residência

no corpo de sua prole, porém a localidade

nunca foi muito precisa, na verdade;

talvez no cérebro encontre sua valência;

no coração, dizem com sagacidade...

Também no fígado haverá possibilidade...

Mesmo os filósofos de maior potência,

cujas obras nos vêm da antiguidade,

davam aos cérebros somente a validade

de resfriar do sangue a sua ebuliência,

sem da razão a menor responsabilidade!

IMBARACH III

Conquista apenas do saber moderno

foi de sua função o real conhecimento,

toda a razão contida no órgão terno,

que primeiro que os demais, no abraço externo

da morte se desmancha em abrandamento;

toda a memória, em seu valor superno

se desfaz e então escorre para o eterno,

levando fama e amor ao esquecimento,

só conservados em domicílio interno,

aos antigos contrariando, nesse hodierno

reconhecer do valor desse portento,

bem protegido, sob o crânio subalterno!

Que até os egípcios, em seu terror do inferno,

o arrancavam pelo nariz, seu julgamento

prejudicado por território sem inverno!...

IMBARACH IV

E como as múmias se esgueiram para a morte,

órgãos internos em quatro vasos guardados,

chamados de canópicos, de igual porte,

com cabeças de deuses de igual sorte,

como animais aos quais eram consagrados,

assim os povos que moravam mais ao norte

entregavam seus corpos para o corte

das chamas em que eram incinerados

(talvez no fogo algum corpo ainda cavorte!)

E tão somente nas planícies, em que aborte

a força das florestas, enterrados

nobres e reis em algum sepulcro forte...

A cada povo a crença que lhe aporte,

pois todos são pela morte conquistados,

indiferentes suas ações que a vida importe.

O CLIPE MISTERIOSO I – 01 AGO 14

Nos traz o fim do amor consternação,

afundam com o azul no mar do espanto

os cristais calcarentos de teu pranto,

ramelas virgens de estupefação...

Nada mais sobra que a constatação

da grã inutilidade desse encanto,

do esgarçado transparente desse manto,

do orvalho verdigris dessa ilusão.

O fim do amor que estertorar não quer,

regouga apenas, tartamudeando inerme,

querendo a qualquer custo prosseguir,

no mesmo sulco e sobre igual mulher,

traçado antigo desse arcano verme,

que a mente nos devora em seu nutrir...

O CLIPE MISTERIOSO II

Amor pretende ser algo permanente,

a união das almas, firme e contundente,

sem que nada o consiga desfazer,

nesse liame do perpétuo entretecer;

mas na verdade, sua firmeza é indiferente;

não são dois corpos, numa redoma quente,

a se fundirem num só, qual o querer

desse Platão, cujo mito podes ler...

As duas metades não se colam totalmente,

só por um vínculo menor e mais precário,

grilhão carnal de sua sexualidade,

como um clipe de metal, que fracamente

prende suas peles, em transitoriedade,

que se retira e se prende em ato diário.

O CLIPE MISTERIOSO III

E é desse clipe que depende o casamento,

mesmo que seja só de carne e não metal;

se retirado só por horas, não faz mal,

mas se enferruja em maior distanciamento.

E é um mistério seu restabelecimento

após qualquer abandono natural,

substituído por outro clipe artificial,

em fugaz tipo de relacionamento.

Mas na sua permanência está o mistério

desses que encontram o verdadeiro amor,

ambos unidos por um clipe imaterial,

muito mais forte que o momentâneo refrigério,

num orgasmo sideral de mais valor

que qualquer clipe só encaixado no carnal.

ERVAS DA PROVÍNCIA I – 2 AGO 14

Na minha terra cresce o pastiçal;

muito mais raro é se ver um arvoredo;

a maioria das árvores, sem segredo,

aqui implantadas de forma artificial;

em grande parte, seu terreno natural

foi o Velho Continente, em seu albedo,

ou europeias ou asiáticas, sem medo

de enfrentar a vegetação original...

Os eucaliptos vieram da Oceania,

as acácias do oriente aclimatadas,

tão bem quanto as árvores frutíferas,

mais o carvalho e o álamo, que assobia,

até as palmeiras lá do norte transplantadas

às superfícies, como frutas mais auríferas.

ERVAS DA PROVÍNCIA II

Nativas são a xirca e o alecrim,

como nativas são matas ciliares,

pequeno porte nesses bordejares,

dos arroios e meandros o botim.

Perto do umbu, há corunilha e enfim,

cresce o espinilho, em quaisquer lugares;

losna e butiá alcançam espojares,

que até a pitanga foi transplantada assim.

Muitas das ervas chegadas desde o norte,

até a cuia, a erva-mate e o sabugueiro,

longas estepes formando o nosso pampa;

patas de gado e esterco de outra sorte

sementes a plantar neste terreiro,

por cada ponto em que o tropeiro acampa.

ERVAS DA PROVÍNCIA III

Planuras feitas sobre saibro e areia,

intercaladas com quaisquer banhados,

pelas ovelhas longos trechos descascados

ou nalgum ponto em que a terra se incendeia,

pois nossos índios não tiveram essa veia

de aqui plantar, eram errantes descuidados,

só semeando os seus restos descartados;

foi só o eurodescendente, onde se apeia...

Hoje possuímos pomares e jardins,

plantações de arroz e até vinhedos,

crescendo sobre a hulha do carvão

ou sobre a rocha apoia-se o jasmim,

no labor dos imigrantes tais segredos

a espalhar e a regar com o coração...

MOSZENDORPF I – 03 AGO 14

Transformei-me numa pedra esta manhã

e a lancei no poço da memória;

ao espadanar, em seu rugir de glória,

criou círculos concêntricos na água vã...

Desmanchei meus pensamentos em malsã

estagnação perdida nessa escória,

cada lembrança vaga e peremptória

feita um novelo de emaranhada lã...

Desmaranhei assim meu intelecto,

que reviveu no cenote, em sacrifício, (*)

e o mundo já revê em claridade,

nessa miragem ilusória de um afeto,

miscigenado em bem e malefício,

que melhor fora deixar na opacidade.

(*) Poço sagrado em que os maias lançavam virgens.

MOSZENDORPF II

Enquanto pedra, eu fui bem mais compacto,

mostrou-se o existir sem mais eventos,

só os da pedricidade em sacramentos:

fiz com o calcário e o arenito um pacto;

as vibrações dos cristais assim eu capto,

em graníticos semitons de julgamentos;

do mármore reconheço os sentimentos,

em minha alucinação de mentecapto.

Enquanto pedra, minhas dores são mais leves,

porem tampouco consigo recompor

os sentimentos de qualquer matéria viva;

e assim os golpes, sejam fortes, sejam breves,

me fragmentam, sem recolher a dor

dessa caliça que de mim se ativa.

MOSZENDORPF III

É de pensar, então, que o mineral

bem mais que o vegetal é infeliz,

ainda mais que o animal, que sempre quis

furtar-se à dor por impulso natural.

Pouco se sabe dessa dor do vegetal,

só se conhece o que a botânica nos diz:

pois recompõe-se, mas fica cicatriz,

gilvaz nos troncos e nos galhos, afinal...

Porém as pedras assim sofrem muito mais

quando partidas, pois nunca alcançarão,

de forma alguma, seu formato original.

Os seus farelos se perdem no jamais,

mil grãos de poeira que ao longe voarão,

nunca tornando à sua pedra matricial.

MOSZENDORPF IV

Mas nessa pedra, enfim, me transformei,

na busca inútil de evitar o sofrimento;

tão somente restringi meu julgamento

e muito mais fatalista me tornei...

E ao me lançar no mar do pensamento,

essas marolas tolas que causei,

o espadanar que em meu sentir deixei,

foram inúteis, senão por um momento...

Fez-se envolvido em tal agitação

meu ser de pedra, veloz a mergulhar

e bem depressa diluiu-se o meu pensar,

a renovar-se tão somente o coração,

reconhecendo que são dor e desengano

que justamente me fazem ser humano.