CENAS
“A sorte é tudo. Os acontecimentos tecem-se como peças de teatro e representam-se da mesma maneira. A única diferença é que não há ensaios; nem o autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, começa a representação e todos sabem os papéis sem os terem lido. A sorte é o ponto.”
(Machado de Assis, in Crônica)
No vazio do teatro
Apresentei-me nu
Sem coro nem decoro
Nem mesmo as asas vi...
Ignorando dotes
Sem nexo a ação persisti
Meio átona desconexa
Meio tosca comovi...
Tateando o choro
Toquei as lágrimas
Antes da luz nascer;
Alguém me mandou calar
Resisti me moldei;
Decidi permanecer
Entre o pano de fundo
E a janela entreaberta,
Entre o calor do dia
E a névoa da noite incerta...
Improvisei um palco
Adaptei meu texto,
Desejei o pão e o peixe,
Eu sou o sétimo sexto...
Tropecei na coxia
Arranquei risos sem aplausos
Troquei flores por abraços
Fui feliz só por um dia...
O tempo deu-me espaço
E eu me projetei ansioso atrás
Daquela liberdade voraz
Que foi o sonho que sonhei
E se transformou num laço
Quando a luz arrefeceu
E gritei chocando o público
Mas tomado por um mal súbito
O povo se ensurdeceu...
Dias sou bem aplaudido
Outros, estranhamente apupado;
Dias represento amigo
Outros, sou o mal amado;
Tenho entre os dentes a morte
A comensal descontente
Enquanto escondo pra sorte
Minha mais tenra semente...
Durante meu espetáculo
Engulo falácias mordentes
Gemendo entrego o recado
Sorrindo brinco de gente...
Meus pés arrastam-se no tablado
Sob olhos peneirados de céu
Meu corpo no espaço deserto
Rolando na areia quente
A volúpia de um povo esmerado
Querendo a sopa no mel...
*
Parece agonia às vezes
Tropeçar quando se adentra
Vento, uma fina navalha
Não mata, fere lentamente
A crueza vil da persona que vivo;
Sufoca-me a fala
Consome minha lida
Condensa o cheiro
Da flor distraída...
Meu ato condena
O ser amplamente
Me resta uma cena
Para ser consumida;
Estrela candente...
Antes que a hora se acabe
Preciso de um teorema:
Lançar uma mó no peito
Dessa platéia presente...
Antes que o tempo escoe
Não posso perder o jeito
Não posso limpar a cara
Antes que o grito ecoe
Preciso de novo tema
Antes que chegue a balsa
E nada restar da valsa,
Aquela antiga cantilena
E desacate o valente
Os moinhos que antepara
O chegar a outra margem...
O hastear a bandeira
Esta coisa corriqueira
Que é deixar de amar
Vai se entranhar nos ossos
Se envolver na flor d’alma
E separar eu de mim...
No primeiro ato foi dor;
O oxigênio queimando o ar
A energia chegando devagar
A dose no conta-gotas...
Espanta-me o galo cantor
Nessa madrugada ignota
Sua fala me surpreende
Mexe com minha neurose
E embaralha meu olhar,
Eu quero tudo encontrar
Nessa apoteose das coisas
Água me embaça as cores
Nasce-me primeiro o choro,
E somente no ato seguinte
Ouço a canção de ninar...
Perdi-me de ato adentro
Mudo como torre longínqua
Passos trôpegos, nauseados,
Habituados do que era mar,
Meus atos afeitos a maresia
Tremiam como vela ao vento
E como um aborto vegetal
Saí daquele ato sem entrar...