Poética

Se de repente

um espelho surgir

das palavras,

não é do poema o reflexo.

O poema não se acha

enchendo de letras

uma página qualquer.

O poema não se cumpre

no estômago de um papel

que se possa rasgar.

O poema é um paladar

que se serve de gente,

da vida que a todos afeta.

É voz que convoca

os destroços carnais

que lhe deram origem.

Todo poema está para ser,

o que vai à página

somos nós mesmos.

Não o corpo inteiro,

apenas o que nos semeia:

um eriçar de pêlos,

alho nos olhos,

a borra do café

esculpindo a noite,

elementos em fúria

se fundindo na lixeira,

enquanto o cão

vira a lata

da Via Láctea.

O poema – como a águia –

chega a amputar a parte aprisionada

para poder voar,

ainda que possua

o mesmo itinerário

e com os mesmos sapatos

caminhe em direção

à mesma palavra,

ultrapasse a pele como suor

ou punhal.

Soco sem punho,

dor sem diagnóstico.

Puro alumbramento

na manhã fugaz,

feito odor, branca

gota jorrada

das tetas do sol.

Um poema lido é holocausto aceso:

consome o vocábulo

e abre estábulos.

(Quem sabe de repente

sopre a tarde uma folha seca

pela fresta da porta da cozinha,

e um clarão lhe cegue.)

A folha diz da árvore

o quanto nela

a árvore está.

Assim o homem que

de sua árvore

deixa cair um poema.

Não como fruta

que apodrece

sob nossos pés.

Mas como o pecado

de não comê-la.

Poema concebido

como folhas

no paladar do vento

Um poema

que alimente o tempo.

Kissyan Castro
Enviado por Kissyan Castro em 20/09/2012
Código do texto: T3891828
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