Chá com Torradas
Olhei um dia pra mim e disse:
sou mentiroso.
Busquei algo dentro de mim,
não achei nada.
Apenas a cara lavada.
Tomava chá com torradas.
Quem sabe quisesse entender
a magnitude do meu ser,
de uma altitude tão relevante
como a que tem a poeira.
Asneira foi o que inventei.
Um momento de excremento
era o meu pensamento.
Meus ossos decoravam o ambiente
burguês de um senhor dinamarquês.
Foi aí que descobri que não tinha vida
ou que não tinha vindo pra nada.
Tomava chá com torradas.
Lá fora a ilha de sol me esperava.
Cabelos ao sul,
o olhar perdido no norte,
ou tantas vezes na noite.
Aliás, minha mãe de verdade,
aquela que por caridade
andava sempre a meu lado,
me colocando de pé.
Não é conseqüente o que digo.
Não ligo,
nem mesmo sou conseqüente.
Mas olho pro mundo e não vejo nada.
Tomava chá com torradas.
Lá vem o maluco que quero imitar,
me oferecendo a sua risada
(mas não sei risar, sei sorrir)
que não me assombra ou espanta,
enquanto em mim se agiganta
uma força imensa, inaudita,
maior, insuperável, infinita
a coordenar o meu ser.
Então vou viver como os outros
sem desconfiar que um dia
pensei em viver como eu.
Rio, 04/03/1977