EU CARPIREI & MAIS
EU CARPIREI
Quando morreres, eu cortarei a barba,
ao contrário dos outros: era costume
deixar crescer somente no azedume
do luto; era o enfeite dessa garba,
que, com orgulho, no rosto masculino,
se ostentava, no viés dessa desculpa,
sempre uma forma de eximir a culpa
de ter sobrevivido a tal destino,
que arrancara de nós a mãe ou pai,
o irmão, a esposa, o filho ou vero amigo,
para assim mostrar a dor; então, o pranto
era vedado ao homem, que não vai
fazer um espetáculo; porém, meu vezo antigo
por ti eu rasparei, no meu espanto...
AGRESSÃO
Eu já apaguei teu rosto de meus olhos.
Não me foi fácil -- usei lápis-borracha
no fundo das pupilas. Numa caixa
fui colocando as visões, nesses refolhos
que tombaram um a um, tantas viagens
gravadas na retina, qual glaucoma.
Cortei das vistas todo o carcinoma,
que essas visões tuas, tais miragens
me impediam sequer de o mundo ver.
Foi uma árdua tarefa esse cortar
da íris relixada e das pupilas,
que a face rebrotava, em longas filas
dos instantâneos que voltava a ter,
por mais quisera não mais te avistar.
CANTO INDECISO XXVIII
Precisarei de ti quando meus anos
começarem a exigir muito de mim.
Por enquanto, ainda não: podes, assim,
lançar-te amarga nos teus desenganos,
no destino insensato desses planos
que a nada levam, trapos de cetim
a revestir um corpo sem lavar; enfim,
à cadência incorruptível dos enganos.
Mas vai chegar o dia em que preciso
de alguém que me auxilie e que meu braço
ampare nos tropeços desta vida.
Só então saberás quanto é incisivo
que repartas comigo o teu espaço
e, finalmente, te entendas redimida.
VORAGEM XIX
Já antes referimos esse afã
da criatura humana por calar
do Espírito o insistente reclamar,
mesmo que sempre tal ação lhe seja vã.
Não que nos seja toda hora malsã:
há momentos de breve descansar,
ao ver breve resposta rebrotar,
ainda que seja de perfeita só meã.
Mas por tudo que temos observado
e como fruto próprio da experiência,
até sentimos um palpitar de calma
quando esse breve descanso desfrutado
preenche, por momentos de paciência,
esse vazio que nos habita n'alma.
VORAGEM XX
Desde pequena a humana criatura,
por curta seja sua observação,
desfruta mesmo assim satisfação
por afastar-se um momento da amargura,
ao ter resposta que transponha tal largura,
que provoca sua vaga inquietação,
que nos momentos de luz dessa razão
lhe traz de calma um instante de fartura.
Foi o momento que o vazio lhe preencheu.
Mas logo passa essa resposta breve
e se depara de novo com a inquietude.
Isso é normal; mas que mal lhe concedeu
o avançar da idade e nem a leve
sabedoria lhe abrandou a senectude!...
VORAGEM XXI
Aquilo que se faz prejudicial
é quando a idade nada canaliza,
seus desenganos nem sequer balisa,
mas só prossegue vítima do mal.
Porque faz parte da vida natural
pressentir o que falta, na concisa
limitação que tal ciência visa.
Quem não encontra pouso, nem sinal,
Por mais que tenha todos bens da vida,
não alcança jamais o ser feliz,
pois nem sequer do Bem teve noção.
É levado na inquietude de vencida
e no momento final, então se diz
que sempre teve vago o coração...
VORAGEM XXII
E quanto passo em falso evitaria
de dar na vida, se ao menos compreendesse
que toda inquietação assim se desse
por força mesma da luz que deveria
ter enxergado em um antigo dia:
a força de que a vida humana desce,
esse chamado que em sua alma cresce
e que muito melhor vida lhe daria.
É a própria força que sustenta a vida humana,
de cuja avaliação é encarregado
o próprio Espírito de que se vê dotado,
para que deixe toda a luta insana
e decida ocupar-se seriamente
desse chamado interno que pressente.
VORAGEM XXIII
O corpo não consegue, de iludido,
e a própria alma se prende na emoção;
somente o Espírito controla essa razão
e domina todo golpe desferido.
Esse chamado interno é proferido
pelo autor mesmo dessa premiação,
esse escultor da própria evolução,
quando o governo tenha recebido.
Talvez não veja logo a recompensa
aquele que só busca premiação,
ao invés da verdadeira gravidade
que nos atrai bem mais que qualquer crença,
nesse momento de total realização
que nos constrói para a racionalidade.
VORAGEM XXIV
Porque é preciso realizar essa alquimia,
nesse processo de evolução consciente,
em que o Espírito se transmuta lentamente
até gozar do pleno Bem que merecia.
Que o Espírito ascenda a penedia,
apoiado em sua busca permanente
pela única ciência competente,
desenvolvida na Logosofia.
Controla assim qualquer aspiração
e põe de lado o ensejo material,
por sua própria natureza transitório.
Corpo e alma, numa mesma criação,
guardada pelo dom espiritual,
único alvo na vida meritório.
CANTO INDECISO XXIX
Eu pretendia até cortar do verso
esse seu longo fluxo prolixo;
não me disponho a dar formato fixo
e já me encontro numa pilha imerso
de emoções verdigris em que converso
está meu coração, sonho de lixo,
me revolvo nos poemas como um bicho
e trabalho dia e noite nesse terso
converter de uma língua para outra
o que não me desperta o sentimento,
pois só provém de alheio coração.
Oscilo sem respeito por estoutra,
apenas transmutando pensamento,
em que troco por dinheiro minha razão.
NINGUEM ME MAMA
Ninguém me mama, ninguém me chupa,
ninguém minhas teta quer apojar...
Tou sem bezerro, tou sem tourinho,
só o açougueiro quer me pegar...
Hoje, descrente de tudo,
resta o matadouro...
Hoje, no fim de meus dias,
vão tirar meu couro...
Vou virar picanha, vou virar churrasco,
até dos meus casco
fazem mocotó...
Ninguém me mama, ninguém me chupa...