PSICOPOMPA & MAIS

PSICOPOMPA

Conheço aquela que acompanha os mortos

ao destino final das almas soltas...

Ela procura das ilusões envoltas

retirar-lhes a carga, antes que os portos

sejam finais por eles atingidos...

Sabe sinais secretos dessas almas

e fica a sós, aproveitando as calmas

em que os parentes se afastam, esquecidos

de seus deveres para os que partiram...

Então ela penetra nas mentes e acarinha

e assim se esforça a aliviar o passamento...

E de tal modo dos espíritos que giram

ao redor do cadáver se avizinha

que os aconselha em terno sentimento...

NEUROPATIA

Ela chegou-se a mim, em verde vinho

e me buscou em giestas aparentes...

De inocência cheias, transparentes

de só querer cruzar por meu caminho...

E então recuou, tirou-me do regaço

e me espantou de si, qual heresia...

Porque jamais de mim aceitaria

o rutilar do beijo e o quente abraço...

Peregrinou-me, apenas, de curiosa,

se teria o poder de conquistar,

e, na vitória, sentir-se mais mulher...

Mas no momento de dar-se, dadivosa,

sentiu o medo de se emaranhar,

sem confessar o quanto bem me quer...

EM TERÇO PURPURINO

Se o sol me aquece o rosto, minha prece enviarei;

Se a chuva me alivia, um lago e mar serei;

Se a natureza é frágil, serei sua fortaleza;

Se incerto for destino, serei então certeza...

Se o fado mágoa for, serei mais alegria;

Se o fato é duro e rijo, serei a nostalgia;

Se o olhar não mostra a vida, serei visão eterna;

Se dura for mulher, eu fingirei que é terna...

Se é o ar que me dá vida, mais vida ao ar darei;

Se é o som que me alimenta, ao som já me entreguei;

Se a vida um bem me traz, contemplo em pleno pasmo;

Se o vento me dá asas, darei asas ao vento;

Se amor me dá prazer, eu nunca me contento,

se amor igual não der, em delirante orgasmo...

COMO PINGOS DE LUZ

Eu fico a esperar, perdido o tempo,

em que tenha melhor atividade...

Os alvos não me chegam nunca a tempo

e fico só, sem pompa, nem vaidade...

Perdendo tempo, que melhor me fora

empregado em minhas longas traduções...

Um tempo posto fora em emoções

de espera, que mais bem faria agora

se estivesse em minha casa a trabalhar.

Bem sei que não virias nesta hora,

mas te desejo perto; e a imaginar

me ponho nestas horas postas fora,

que fora fora todo o meu ardor,

porém não fora fora o próprio amor...

ORCUS

A vida é assim: amealhar de ganhos

e um balançar de perdas, pois tudo

tem seu preço,

Principalmente o bônus, o grátis, o adereço,

o que nos traz vantagens e ver lucros tamanhos,

como nunca esperávamos. E assim,

nos entregamos

ao bem inesperado... E tudo sem esforço

aparente... Que, de fato, após darmos endorso,

descobrimos quão caro é o dote

que tomamos.

Assim nos deslocamos, bisonhos, pela vida,

gastando nossos dias em emoções

sem glória,

sem lembrar do futuro os juros da cobrança...

Até nos encontrarmos sem lar e sem guarida,

num deserto sem luz e falto de esperança,

onde o único vento é o que sopra

da memória...

AMOR DE CÂMARA XV

Já na minha idade, o coração se agita

em ritmo diferente dos de outrora.

Desejos permanecem, muito embora

a ânsia em consumá-los, seja aflita

espera por um bem mais ardiloso

do que o simples fruir de um dom concreto.

Quero algo mais suntuoso e assim discreto:

que seja humilde e vasto de orgulhoso...

Meu anseio transitório e duradouro...

Amor de barro envolto em fólio de ouro...

Fama obscura e estética assimétrica...

Austera e sibarítica, em serpentina ética...

Pois enquanto faço amor, meu coração se move,

ao escutar a música de Rimsky-Korsakov

DILAÇÃO

Não é uma desistência, certamente:

sempre conservo esperança no futuro.

Fátua e vaga esperança que me auguro,

mas nunca a desistência permanente.

Se pecados eu tive, foram poucos

e separados. Cometi mais inações

do que atos proibidos. E mais inanições,

que fantasias nos meus sonhos roucos.

Não me queixo dos outros: eu que fui

o culpado por deixar me governassem

e me levassem aonde eles queriam...

Nessa obediência estéril, em que flui,

em prosa inútil, o tempo em que aceitassem

todo esse medo que de mim sentiam...

DELAÇÃO

Eu só posso dizer que não queria

que o filme fosse igual como assisti.

Cenas diversas das que percorri,

com muito mais deleite, eu poderia

ter espelhado. Ou, talvez, nem saberia,

caso outro sonho mais belo que os que vi

se derramasse em gota e frenesi

sobre meus membros, na estranha calmaria

com que me acostumei. Queria a hemorragia

de uma paixão solerte e inesperada,

que me rasgasse o peito em alacritude.

E a que mal resistisse... E então seria

até provável que fugisse... E nada

mais desejasse que tal beatitude...

DILATAÇÃO

Isso é o que sinto agora, enquanto escorrem,

qual sangue negro, garranchos no papel.

Eu me sinto incapaz desse hidromel

sorver da vida, ainda que me forrem

a taça inteira com camadas de ouro.

Meu superego insiste em que trabalhe,

que a nada me autorize que atrapalhe

esse sulco profundo em que me agouro.

Me sirva por destino: eu fujo e fico.

E sempre foi assim. Nunca busquei

o quanto mais queria e refugiei

meus membros no fulgor do pobre e rico

viver fecundo de uma rica mente,

enciumada do corpo que a sustente...

JURISPERÍCIA

E por que não terei assim direito

de viver o que a mim só diz respeito,

mas ter de conformar-me à tirania

dos desejos alheios que, à porfia,

de mim exigem tanto e inda mais querem?

Por que não posso sonhar com liberdade?

Porque percebo que os que mais me ferem

se enraizaram, com tal profundidade,

que mesmo quando posso, já não quero

e até queria nem sequer poder...

E quando se aproximam, nem espero,

porque queria mais um adiamento,

em que apenas ao sonho pertencer,

sem nunca ter real contentamento...

MALBARATO

Pecados, se os tive, foram contra mim.

Não contra os outros, porque compensei,

em carne e sangue, o pouco que tirei

de qualquer alma que feri. Enfim,

o que eu mais fiz foi negar a mim prazer

e dos outros não ganhar felicidade.

Que eu saberia, sem equanimidade,

muito mais suportar que receber.

São esses meus venais pecados roucos...

Pecados inocentes, resfriados,

em diarréia pálida tais espinhos...

Mais débeis que afiados, esses poucos,

aparvalhados e incultos, descontados

os mal-fazeres despidos de carinhos...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/07/2011
Código do texto: T3082186
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.