ÁGUAS LUSTRAIS 1-12
ÁGUAS LUSTRAIS I (2007)
No princípio eram palavras, bem pequenas,
para indicar o Ser e seus modismos.
Depois, criaram tantos eufemismos,
para evitar as palavras obscenas...
No princípio era o Verbo, com apenas
seis ou sete variações em concretismo...
Pairava dia e noite sobre o abismo,
ao som das águas, em gloriosas cenas...
Depois, viemos nós: cada assertiva
realizou-se pela mente humana,
feita em Palavra, em tal realização.
E assim falamos nós: cada furtiva
ideia sai da boca... E soberana,
faz-se real em completa afirmação.
ÁGUAS LUSTRAIS II
Antigamente, ao cometer pecados,
que a alma enchessem de contaminação,
era costume lavar o corpo então
para sentir os corações lavados.
Os sentimentos antes maculados,
por ofender aos deuses, na intenção
ou sem ela, ao pecar por omissão,
se acreditavam assim purificados.
Eram as águas lustrais, águas benditas
por sacerdotes após longas cantilenas,
lavado o corpo, se removiam as penas:
lavada a alma das maldições aflitas...
Porém a minha eu lavarei numa canção,
purificada por meu próprio coração.
ÁGUAS LUSTRAIS III
Sempre escolhi viver. O suicídio
me passa na cabeça com frequência
e eu puxo a ideia, na maior paciência,
por um de meus ouvidos. Homicídio
pratico então... Em meu ideiacídio,
eu torço-lhe o pescoço, sem leniência,
pico-lhe a carne e os ossos com ciência
e os sirvo em refeição, qual regicídio,
para os autores internos dos poemas
que em mim habitam e famintos são
por emoções mais fortes de tristeza.
Assim, meu suicídio faz-se em gemas,
cheias de ganga e jaça, com certeza,
mas que reluzem sem cessar no coração.
ÁGUAS LUSTRAIS IV
Não quero ter palavra corriqueira
atravessando os lábios: som mesquinho;
que seja a fala eivada de carinho,
desde a primeira voz à derradeira.
Que seja a fala sempre condoreira,
visando algo de belo: como arminho;
que não seja um poema comezinho
a macular a língua alvissareira.
Que seja o verbo o partejar do sonho,
a lira de cristal, tambor guerreiro,
a despertar para o fim de toda a luta
e não um canto pálido e tristonho,
mas promessa viril, brado certeiro,
que se escuta e se atende sem disputa.
ÁGUAS LUSTRAIS V
Alguns esperam que ateu eu seja,
ou, pelo menos, procure citações
de outros que já o são (ou pretensões
tenham de sê-lo). Mas onde quer que esteja,
eu nunca duvidei de Sua presença,
em que nos inserimos, com certeza,
por mais que a vida humana de vileza
esteja cheia ou quando indiferença
se pressente nas ações da Divindade...
Mas é preciso lembrar que, do Infinito,
não é tão fácil no finito penetrar...
E que as coisas se equalizam, na verdade,
já que as mágoas que a um deixam aflito
podem servir para outros alegrar!.
ÁGUAS LUSTRAIS VI
O ceticismo é bom, mas não é o sal da Terra,
pois tanta coisa há, que se diz superstição,
mas lá no fundo representa a ampliação
dos mil sonhos que o desejo desenterra...
Sonhos de medos que surgem desta guerra
semi-consciente da auto-punição,
quando se busca a parcial destruição
do sucesso e do amor, que então se encerra...
Não que vamos temer espelho e gatos
ou passar sob as escadas; desconfiar
desse tipo de coisas é saudável...
Mas a dúvida integral distorce os fatos
e poderemos deixar de acreditar
na própria vida, em seu vigor interminável.
ÁGUAS LUSTRAIS VII
Que a vida é escola para a sepultura
e diariamente nos prepara para a morte.
Quer nos seja favorável ou má a sorte,
todos marchamos para a mesma formatura.
Por isso é importante, a toda altura,
viver intensamente, em amplo esporte,
e revestir com alma sempre forte
os dias que nos trazem a amargura.
Pois tudo é uma tolice: igual destino
é provocado pelo bom e mau momento
e o que importa é a forma como agimos.
Até que soe o derradeiro sino
e recebamos, no final alento,
esse diploma do curso que cumprimos...
ÁGUAS LUSTRAIS VIII
Eu sou palavra do mesmo pergaminho
que me decreta a conclusão da vida.
Já superei toda a ilusão perdida,
palmilhando com garbo meu caminho.
O meu destino, seja alegre ou mais mesquinho
eu já enfrentei, a cada hora vivida.
Algumas vezes, levei o fado de vencida,
em outras, fez-se o fardo duro espinho.
Porém acúleos podem ser quebrados,
as parcas riem, em suas zombarias,
quando tecem a aparência de meu bem,
Mas eu conheço os seus ardis fanados
e as enfrento com minhas próprias ironias,
que dos fracassos sei zombar também.
ÁGUAS LUSTRAIS IX
Eu sou mensagem e fui lançado ao oceano
dentro de uma garrafa: era socorro
que alguém pedia, mas facilmente morro,
como o náufrago, perdido em desengano,
a cada vez que a semente, no seu plano,
é lançada no mar, se torna escravo forro,
que não percebe o peso desse morro
a tomar em seus ombros: ser humano.
Sou lançado no mar da humanidade,
frasco de vidro é este corpo frágil
que tanta angústia traz e tantas dores;
mas assim mesmo, de permeio aos estertores,
eu sou mensagem, na palavra ágil,
que o vidro quebra ao dizer toda a verdade.
ÁGUAS LUSTRAIS X
Pois vou descer ao mar, sem batiscafo,
escudado em amor e treze pérolas
eu te trarei, vibrantes como mérulas
e as pendurarei em um só sarrafo.
Não sofrerei narcose, que teu bafo
trago em minhalma e o ar de meu pulmão
oxigenado sempre está nesta emoção
que quer queimar-me e dia a dia abafo.
Depois, com treze jóias cristalinas,
gargantilha me farei, não para dar,
mas para usar eu mesmo, pois ausente
estás sempre de mim e jóias finas
já são teus próprios dentes, a cortar
as minhas esperanças, lentamente...
ÁGUAS LUSTRAIS XI
Não há por que lamentar assim a morte,
nem a dos outros (remorso dando ou alívio),
nem a tua própria, por todo o convívio
que terás com quem seguir o mesmo norte.
Nem há por que se lamentar da sorte,
se é má ou boa; do destino o crivo
é pura impressão tua, um toque esquivo,
recompensado por um oposto corte.
Na vida que floresce a teu redor,
és tu que sofres em cada um que sofre,
ou te aborreces em quotidiano indiferente.
Que todo o orgasmo te reflete a cor
da humanidade, nessa chave e cofre
que te tornam mais nobre e mais potente...
ÁGUAS LUSTRAIS XII
No ventre das mulheres, eu sou feto
e nasço em cada um que vem ao mundo.
Eu empatizo com o fulgor profundo
de cada filho ou filha, em doce afeto.
No bosque dos poetas, sou abeto,
um verso em cada folha, puro ou imundo,
na melodia o tom plácido ou jocundo
e cada amor transcorre no meu teto.
Na cinza dos que morrem, eu sou ventre
e com eles me vou, na antiga lida,
desfazer meus elementos na serpente
Ouroboros, que a própria cauda adentre,
que é nesse pão de ossos que está a vida,
que em cada novo protoplasma se apresente.