DISJUNTORES / A BALADA DE CACO

DISJUNTORES (2008)

Quando tudo parecia correr bem,

quando tudo, palmo a palmo, dava certo,

algo ocorreu, deixando-me deserto

quanto esperava neste final também.

Foi como se estivesse mais além,

qual um portal cruzasse, para incerto

universo paralelo, longe ou perto

do destino anterior que me sustém.

Senti-me assim totalmente inorientado.

Havia elemento que me agradava mais,

porém os outros todos degradaram.

E desse modo, mal queria ser amado,

se tenho de quebrar tantos cristais

por um diamante só que me alcançaram.

DISJUNTORES II (19 abr 11)

A vida é assim e não há por que queixar-me:

é como largo campo de batalha

e se a defesa, um só momento, falha,

saltam duendes para derrotar-me.

A vida é assim, qual uma longa calha,

contendo fios que fazem soar alarme;

mas se um momento sem vigília dar-me

eu me concedo, já me cobre a malha

de tantas armadilhas e mundéus.

A meu redor coloco disjuntores

para evitar quaisquer curtos-circuitos.

De um arco voltaico tomo os véus,

em proteção contra meus caçadores,

que vejo a celebrar estranhos ritos.

DISJUNTORES III

A vida é assim: a todos os momentos

é necessário manter toda a atenção.

Qualquer descuido traz desolação,

quaisquer tolices ou falhos julgamentos.

Toda armadura possui seus vazamentos;

o sentimento sangra o coração;

o pensamento expõe-se, sem razão;

cada emoção nos dá quebrantamentos.

Por isso, sempre é bom guardar reserva

(e reservas manter de munição,

para quando precisar delas se venha!)

Que da coragem a precaução é serva;

que do bornal não se coma todo o pão,

enquanto as armas afiadas se mantenha.

DISJUNTORES IV

Contudo, a vida é como um fanfarrão:

quando enfrentada, a ameaça se recolhe;

a fúria se dissipa e então se encolhe,

que a vida é um teste de longa duração.

Cada momento de nova provação

sucesso esconde a quem lutar escolhe;

quando cortamos aquilo que nos tolhe,

de nossa vida tomamos direção.

Mas se nos entregamos sem lutar,

enfraquecida assim a nossa mente,

tudo o que temos é levado embora.

E os disjuntores se deixam desligar,

como navalhas que descem lentamente,

cortando a alma de dentro para fora.

DISJUNTORES V

Pois foi assim que aprendi a desconfiar

dessa pirita que a meu redor cintila;

desse ouro falso, as ilusões em fila

que meu sucesso pareçam apregoar...

Tais impostores, que a mente então repila,

mas com delicadeza, sem magoar...

Quem sabe o brilho se possa revelar

em carne rosa após a lenta esquila...

E com derrotas, igualmente temporárias,

não chegar, lá no fundo, a me importar:

são duas faces de uma só moeda.

Duplas cunhagens, sempre necessárias

para que o ouro possamos empolgar,

que entre as duas faces ainda queda...

DISJUNTORES VI

É muito mais questão de conhecer,

quando se sabe aproveitar a experiência,

como limar os dois lados com paciência,

para esse ouro que escondem se obter.

Porém nada se consegue na indolência:

novos portais podemos escolher

ou no atual mundo também permanecer,

lucro e perda sopesando com prudência.

Ligados conservando os disjuntores,

que nos avisam dos mil curtos-circuitos,

que só nós mesmos podemos consertar.

Ódio e derrotas, vitórias nos amores,

simples lampejos de cristais partidos,

breves eventos que escorrem sem parar...

A BALADA DE CACO I (2008)

Diziam os romanos que às latrinas

presidia um espírito supremo.

Era Caco esta ninfa, que ia ao extremo

de perfumar dos patrícios as narinas...

As cloacas de Roma eram bem finas

e existem até hoje; e esse veneno

que afligiu a Idade Média, ainda peno

ser consequência de pôr de lado as sinas

destinadas em Roma aos emunctórios...

que amontoavam pelas ruas, afinal,

condenados pela igreja, em um só saco,

todos os velhos costumes meritórios.

Para algo serve então meu "eu fecal":

sempre fecunda a doce ninfa Caco...

A BALADA DE CACO II (22 abr 11)

Pobre Caco! Seu nome significa

qualquer coisa de ruim, um fragmento

de telha ou de cerâmica, um momento

em que um engano para sempre fica.

Essas palavras cujo som já se amplifica

em algo de ridículo portento

ou mesmo de vulgar pressentimento

ou da feiúra que a velhice indica.

Mas sempre se encontrou dignidade

naquela dama já entrada em anos,

que suportou gentil a amarga sina

e que, ao ouvir a frase de maldade,

assentiu, sem mostrar seus desenganos:

"Sou caco, sim, de porcelana fina!"

A BALADA DE CACO III

Porém vergonha na higiene não existe.

Foi da saúde fiel mantenedora

a nobre Caco, a ninfa protetora,

que por maior limpeza assim insiste.

Sobre as águas do Tibre a dama triste

presidiu, como fiel dominadora,

de Roma retirando essa pletora,

que a lançar à distância não desiste...

Pois já foi dito que civilização se mede

pela distância colocada entre os humanos

e as fezes e dejetos que produzem.

Portanto, a Caco louvores se concede,

ao conduzir os sedimentos mais arcanos

até o mar, para que outros seres usem.

A BALADA DE CACO IV

Nas grandes bocas da saída dos esgotos

as substâncias que nos fariam mal

eram saudadas por um coro triunfal

de bactérias, fungos, vermes rotos,

nutrindo até crustáceos, em remotos

cordões alimentares... Afinal,

a ecologia, no fundo, é o natural

reaproveitar de restos ignotos...

O que não desejamos, se devolve

e é prontamente reutilizado

por essa multidão de comensais...

Comemos vegetal, que o chão dissolve,

em água e ar, no poder do Sol sagrado,

até que, um dia, nos comam vegetais.

A BALADA DE CACO V

E é Caco quem produz transformação,

donzela invicta, de vestes impolutas,

retirando minerais de tantas grutas,

que assim preside a lenta mutação.

Não há vergonha em limpar a podridão.

Vergonha é de quem suja, se me escutas,

pois a limpeza que para outrem imputas

é tua desculpa para a poluição...

Foi atribuída a José do Patrocínio

a frase lapidar que nos atrai,

se bem que tais conceitos falsos eram

e até expressem um certo latrocínio...

"Eu sou negro, porque limpou meu pai

toda a sujeira que os teus pais fizeram!..."

A BALADA DE CACO VI

Porém Caco mantinha sua altivez,

executando tal tarefa necessária,

as latrinas presidindo, como pária,

na proteção contra a desfaçatez,

transformando essa sujeira multifária

em adubo e em alimento, por sua vez,

mas conservando sua formosa tez,

através dessa faina inordinária...

Receba, pois, as graças permanentes,

caia a vergonha sobre os poluidores,

sobre a vasta multidão dos inconscientes,

merecedora assim de mil louvores,

por afastar de nós as inclementes

cargas diárias de tantos maus odores!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 28/04/2011
Código do texto: T2936062
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