IMPARDÊNCIA 1-12

impardência I

minha caneta se tornou aidética,

cheia de cinza e gris amargurado;

prendi-lhe os borbotões, fui derrotado

por mil infecções de pouca estética;

porque estes versos são oportunistas

e se aproveitam dos estados de fraquezas

para expandir-se, alegres em tristezas

ou tristes na alegria das fachadas:

eu e eles nos fizemos esgrimistas,

duelos marcados à luz das madrugadas;

pois tempo houve que à ponta do florete

se derramava em luta o sangue branco,

futuros escrevendo em ventre franco;

mas agora só encontra um vaso estéril,

meu sangue sai em lacre de sinete,

em cartas mudas de teor esméril;

e nem sequer procuro outra palavra:

foi uma rima que morreu no nascedouro,

por outra não achar, em meu desdouro,

nessas redes neurais, de que me enviam

as atrevidas prudências de minha lavra,

que em tais frases ardilosas me agoniam.

impardência II

a vida é cinza, afinal, porquanto oscila:

nem sempre é branca, em sua opalescência,

nem sempre negra em sua decadência;

possui o bem e o mal nela se asila.

não há sonho de bem, sem algum mal,

nem mal existe que não traga bem;

toda incerteza se compõe, também,

da escala cinza feita de impardência,

da transição do gozo natural

para a tristeza plena da impotência...

assim vivemos todos, por igual;

são gradações que toda a gente tem,

inesperadas sempre, que nos vêm,

tudo mesclado em laivos de indulgência,

por ver o bem na falha individual,

por ver o mal contido na decência...

pois avaliamos de forma desigual

os momentos de gozo que se veem,

dessa maneira que mais nos convém,

enquanto qualquer dor, em consequência,

sempre é sofrida como ardor fatal,

do qual apenas se sente a violência.

impardência III

nas gradações solenes desta vida,

qual um órgão a tocar uma cromática,

nenhuma acentuação é mais enfática,

nenhuma tônica requer a despedida.

nunca paramos na cadência desse tom,

sequer pairamos pela dominante;

há predomínio da subdominante,

somente quando a alma é mais sensível;

toda essa escala ondula em semitom,

em tal modulação inexaurível.

não há definição da diacrônica

em afirmar: hoje tive um dia feliz;

ou lastimar esse agora que nos diz

termos passado por maré de azar;

é uma escritura apenas anacrônica,

tudo depende apenas do avaliar.

do mesmo modo que jóia a rebrilhar

se revela tão somente grão de areia;

há sempre uma moldura que incendeia

o mais negro bulcão da tempestade;

tudo depende assim do descantar

de cada nota na escala da inverdade.

impardência IV

mesmo na gama das cores, multicor,

se manifesta sempre a impardência,

pois nem todo o encarnado é violência,

nem todo o verde transmite seu frescor.

é somente no papel que o doce arco-íris

se revela em sete cores definidas,

bem delineadas, em molduras tidas

como fronteiras entre a cor e a cor;

a cada vez que um vidro tu partires,

em cada caco rebrilha outro fulgor.

assim as cores do espectro solar

se mesclam entre si e se misturam

a cada instante cambiam e já não duram,

por mais se prenda nelas a atenção.

e igual ocorre com a boa sorte ou azar,

sempre revoltos em ondas de ilusão.

por certo o vidro quebrado, reluzente,

nos representa prejuízo irrevogável,

porém o vidro intacto é notável,

justamente por possuir cor permanente,

embora a perfeição e a integridade

reflitam laivos de vaidade complacente...

impardência V

o tempo é um poema e as letras somos nós.

tudo que tinha de ser dito já o foi;

o quanto nos feriu já em outro dói,

por mais que apenas nossa dor pareça atroz.

o tempo é um poema de cinza gradação:

amamos muito mais os dias belos,

nas nuvens brancas estão nossos castelos

e as nuvens negras desfazem nossos sonhos;

somos daltônicos em nossa avaliação

e o pardo não se vê nos véus risonhos.

porque a impardência é negra ao pessimista

e a quanto lhe sucede chama azar;

sempre imaginam que o fado está a brincar

e que os deuses os tomaram como alvos;

mas o contrário pendor é o do otimista,

que embranquece o cinza em sonhos calvos.

eu me conto entre estes: a esperança

foi sempre minha amiga e companheira;

fiel esposa será na derradeira

hora faminta a me encerrar a vida;

e em toda perda reconheço uma bonança,

pois a todas gradações já dei guarida.

impardência VI

mesmo o diamante possui sua impardência;

poucos são brancos, limpos, cristalinos,

da ambição bafejados, mais divinos,

recordações humanas da imprudência.

alguns têm mais valor, em branco puro,

colocados contra folhas de papel;

não mostram qualquer tom de cor de mel,

mas são brilhantes da mais simples cor,

apenas claros, sem toque mais obscuro,

sem jaça que lhes corte seu valor.

porém a maioria é amarelada,

de forma tal que quase não se vê

e somente contra o branco é que se lê

esse traço de ouro que irradiam

tais diamantes de cristal menos airado,

nos lampejos de âmbar que surgiam.

e no entretanto, se o tom é mais plangente,

passam a ter mais força e esplendor;

como um topázio, o diamante tem valor;

como a ametista reluz diamante rosa.

valor mais tem, porque não é frequente,

diamante azul em cor esplendorosa.

impardência VII

o que o mundo nos dá ou que nos tira

depende apenas de sua impermanência;

não há juízes de espiritual potência,

nem zombadores a quem o riso inspira.

a púrpura dos tons tem gradações:

há dores fracas, médias e mais fortes,

há cortes fundos e há menores cortes,

porém a dor percebida é individual

e se há grandes e pequenas infecções,

a reação de cada um é desigual.

é claro que a tua dor sempre é a mais forte,

de que modo hás de sentir a dor alheia?

mas só nos dói a queimadura que incendeia

no momento presente; que esquecida

é a intensidade da dor de grande porte

pelas brumas da memória já envolvida.

porque esse é o maior ato de piedade

que tem para conosco a natureza;

lembramos mais momentos de beleza,

enquanto a dor se reveste de algodão,

por mais feroz que fora, na verdade,

empalidece em sua recordação.

impardência VIII

a gente lembra apenas: "foi horrível!

a dor mais forte que senti na vida,

me levou totalmente de vencida,

queria a morte mais que a dor terrível..."

porém o tempo te deixará insensível

a tal tremenda e pérfida lembrança;

como um prazer dos tempos de criança,

a dor é envolta em panos de magia;

enquanto esta memória é inexaurível,

perde-se a outra, passada sua agonia.

a gente pode até lembrar sintomas,

mas se tornaram pálidos, cinzentos,

são pesadelos somente, pensamentos

que doem só de lembrar, mas diferentes.

ai de nós se não sofressem essas comas

nossas dores e penas mais pungentes!

de forma igual, todo prazer da infância,

de forma ou de outra, nos é magnificado,

quando, de fato, nunca foi sagrado...

E a dor é envolta gradualmente em anestesia,

salvo essa pena de crônica constância

que ainda se sente até o presente dia.

impardência IX

também assim elegemos o ciúme,

porque este se renova eternamente;

não recordamos a sua dor pungente,

mas brota em frutos diários de azedume.

é muito mais constante que o amor

a gelosia em variadas gradações;

dizem que é verde em suas aspirações:

tem olhos glaucos o monstro ciumento!

enquanto os olhos castanhos têm calor

bem mais profundo na raiva do momento.

mas há ciúmes maiores e menores:

são como tudo o mais, apenas gatos

pardos na noite, o alvo de sapatos,

para que cessem seus miados estridentes...

o que provoca situações ainda piores:

fogem os gatos, descalças ficam gentes!

há pequenos ciúmes de alvorada,

ao se acordar, por anterior motivo

e há o maior ciúme, redivivo,

quando na lida quotidiana é demonstrado,

porque ciúme não conduz a nada,

salvo a um rancor nutrido e concentrado.

impardência X

pois em todo esse contraste, é permanente

na vida a escala gris do arco-íris pardo,

mas o sonho, a escala azul de manso fardo,

colore o mundo a refluir circunjacente.

tudo depende do jeito que encaramos

o bem que nos refresca dos suores.

se desconfiamos de todos os amores

ou se a eles nos cedemos totalmente;

se ao sabor da corrente nos deixamos,

ou se remamos contra essa torrente.

do mesmo modo, depende da maneira

com que encaramos o mal que nos afeta:

ou vemos nele faceta mais dileta

ou nos cortamos totalmente em seu desgosto,

sem perceber nuances nessa beira

de escuridão crescente no sol posto.

porque toda a vitória tem seu preço,

qual pagamento exige uma derrota:

o bem e o mal nos cobram a sua quota,

na busca inútil da felicidade;

tudo depende da estação e do apreço

que lhe atribuirmos em equanimidade.

impardência XI

felicidade é uma cinza relativa:

nessas coisas de amor somente existe

ao provocar a redundância triste

de uma sorte a terceiros mais esquiva.

mesmo o amor de maior exaltação,

essa flama que consome corpo e mente,

tem o preço de mostrar-se indiferente

aos sentimentos dos espectadores:

causa ciúme e inveja ao coração

de quem não compartilha tais ardores.

porque se pode encarar com complacência

ou, até mesmo, um pouco de ironia,

esses parzinhos valsando em fantasia.

deixar que tenham as chances que tivemos,

que se afoguem em mútua redolência,

enquanto o brilho de seus olhos ainda vemos.

mas se não são estranhos, mas queremos,

bem ao contrário, ter um deles por parceiro,

ela ou ele em nosso próprio reposteiro,

como é triste esse amor para os de fora!

e que mesquinhas emoções então vivemos,

na malquerença do rival de agora!...

impardência XII

e sendo a vida essa alternância parda,

das listras degradantes de um detento,

da equina zebra de herbívoro portento,

na espera tola da chuva que ainda tarda,

como é triste ver a gente revoltada,

sempre a queixar-se de seu intenso azar,

dessas correntes que arrasta em seu andar,

dessas portas que se fecham de repente!

a humanidade sempre incontentada,

em sua raiva do fado indiferente.

qual se o destino tivesse obrigação

de te dar ou negar felicidade,

qual te devesse obedecer a divindade,

comprada assim com velas e orações,

quando, por meio de tua própria ação,

o teu destino moldas e te impões!

muito melhor é coletar sabedoria

em teu constante tomar de decisões

e aprender a encilhar tuas ilusões...

pois não existe essa tal felicidade,

senão no pardo sorriso da ironia,

indiferente a teu sucesso ou tua saudade.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 03/04/2011
Código do texto: T2886375
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