ENXERTO & MAIS

ENXERTO

Esta série de sonetos herculanos

Exige mais de mim que as simples linhas

Que brotam lá de dentro, sem mesquinhas

Intenções de programas sobre-humanos.

São "poemas-cabeça", intelectuais,

Como falam na gíria, são pesados,

Encaixados no esquema, marchetados

De forma e objetivo artesanais.

No fundo, são sinais de aleivosia,

Busca de efeitos, coriscos de implosão,

Imagens oratórias da razão...

Pois um poema-cabeça é porcaria:

É artificial; muito menor valia

Possui, do que um poema-coração.

ROSÁCEA

Muito longe de ti me quedarei,

Sozinho sempre e sem lembrar saudade,

Até que, suavemente, a mocidade

Se escoe, como o vinho que tomei...

Mas tão perto de ti sempre estarei,

Que a ti meu ser inteiro está ligado,

No rosicler amargo experimentado

Em roçagar de pálpebras que amei...

Que distância e presença são quimeras,

Que à própria contradita se antepõem,

No mar da ausência azul tantas galeras,

Quantos remos os dias nos propõem;

E, se em memória apenas consideras,

Os dias passados juntos nos repõem...

REMORSO

Escusa de acusar-me, fugidia,

Imagem luminosa de [tres]noites,

Na boca amarga o gosto dos açoites,

Da boca que beijei em salmodia.

Escusa de culpar-me em pensamento

Ou às claras mesmo, em gesto decidido,

Julgar que me tornei envaidecido

Ou por orgulho desprezo teu lamento.

Porque minha parte fiz -- e mais que ela!

Teu chamado escutei e, sem cautela,

Lancei-me aos braços frios que me estendias.

Não te podes queixar-- nos separaram

Os ventos mesmos que breve nos juntaram,

Se amor foi mesmo o que por mim sentias...

DEVOLUÇÃO

Sugando sêmen, a terra chora e espera

Por um momento senil de liberdade

E escravidão total à saciedade

Em que o fruto germina e se exaspera.

Sugando sêmen, a terra nua insiste

Em fecundar a rocha mais estéril,

Em parti-la sutil --- raiz inséril

Que ausência expande e nunca mais resiste.

Sugando sêmen, a terra geme e chora,

No êxtase total da entrega morna,

No cintilante orgasmo de uma aurora,

Na verde exaltação de que se adorna,

Pois é o sêmen dos deuses que ela adora

E à divindade a vida então retorna!..

RECARGA

Crucificado em ti,

meu corpo inteiro,

qual a lança de luz

do centurião, / um

halo nos envolve

e o g a l a r d ã o

difunde ao mundo o brado derradeiro.

Teus dentes que me beijam, diadema;

e a coroa de espinhos são cabelos

que me recebem na concha dos desvelos,

me matam e reno-

vam, qual dilema

de que esta carne,

por m o r t a em

meu o r g a s m o,

intangível ficara

neste pasmo, que

a alma me enche

de emoção antiga.

Pois cada vez que

a carne me esfalece,

é como se esplendor então pudesse

encher-me a mente de imortal cantiga.

despite the format, it is a sonnet. bill.

ARTIFÍCIO

Foi uma gota de sombra nosso amor,

escorrendo pelas fendas da surpresa;

foi um brilho de vento essa incerteza,

carícia de perfume sem calor...

Foi um toque inconsútil tal pendor,

uma sombra de alma, com certeza,

um gosto mudo apenas, na impureza

das suavidades mortas de uma cor...

Foi delícia imperpétua, uma balela,

um farfalhar de luz, uma fumaça

que em mim se condensou, uma singela,

labiríntica flor, que ardor gelado

me conservasse assim, numa pirraça:

por uma gota de sombra atribulado.

ZUMBIS

quando me deixo envolver em devaneiO,

recordo olhos, cabelos, dedos finoS,

risos de prata, crisóis em desatinoS,

com o antimônio dos seios de permeiO.

recordo situações que nunca foraM,

hálitos breves, que poderiam ter sidO

casos de amor feroz e desabridO...

mas tantas cenas más que me devoraM

nada mais são que sombras sem valiA.

e estas lembranças que me vêm no sonhO

são arquivos que envolveu a sorte ingratA,

numa defunta e social hieraquiA.

e assim me deixo envolver pelo medonhO

palor suave de antimônio e pratA...

sensatez

eu não te trocarei tão facilmente

por qualquer outra; teria sobretudo

de ser igual a ti ou mais inteligente,

pois com física beleza eu não me iludo;

tal formosura passa incontinenti,

enquanto a mente pode, pelo estudo,

aumentar sua beleza permanente,

enchendo o cérebro de novo conteúdo;

pois de mulher eu quero mais freqüente

que me possa falar numa linguagem

que seja a minha, portanto, que me entenda;

e dê valor ao meu valor presente:

que me seja gentil e me compreenda,

sem ser somente um corpo de passagem...

DEJANIRA VII -- A HIDRA DE LERNA

Neguei-me a redigir por tantos anos

Versos quaisquer de amor ou filosóficos,

Mas agora ressurgem, teosóficos,

Na encarnação feroz de meus enganos.

Pois têm sete cabeças, como a Hidra

De Lerna, que tenho a destruir:

Não basta uma cortar, que a reluzir

Já brotam duas, como a clepsidra

Dos deveres por tempos esquecidos.

Preciso agora de um acompanhante,

Iolau que aplique o archote chamejante

Para conter dos versos novos danos,

Pois se Hércules doze monstros tem vencidos,

Agora chega a hora de doze desenganos.

NEVRALGIA

Segurei um projeto que esperneava,

Na palma de minha mão o sopesei:

Era um projeto de amor, mas não lhe dei

Correta avaliação, porque marcava

Uma esperança vaga e em desalinho

Com os demais projetos que nutria;

Assim, a tal amor não dei valia:

Lancei-o fora, em gesto bem mesquinho.

Embora a tal amor, inicialmente,

Tivesse dado atenção subjacente,

Nunca foi mais que uma emoção discreta.

Joguei-o fora, por pura distração,

No abstrato saber do coração,

Que amor é vago, mas dor é bem concreta!

INARTRITE

Ela foi, afinal, diagnosticada

da mesma afecção que a incomodava

desde menina, em leve desatino,

que lhe extraía o ânimo e a libido:

Uma moléstia sutil, que tinha herdada,

insidiosa e gentil a dominava,

músculo a músculo, em atroz destino,

sem que o prazer da vida, concedido

pela saúde lhe houvera revelado...

Foi um penar de antanho, espiralado

pendor que aos ossos reflexão empresta.

E o mau humor que tanto me afligia

nada mais era que fibromialgia

a encher sua alma de uma dor funesta...

DESVENTURA

pois me tomou de assalto, de repente,

um laivo redolente e sem malícia,

olhar a reluzir de impudicícia

que era, no fundo, apenas inocente.

não foi mais que uma noite de perfume

que me explodiu no rosto, um sortilégio,

feitiçaria, quem sabe?... um sacrilégio

que só deixou-me ressaibo de azedume.

e sou forçado assim a constatar

que minha ânsia se foi... abandonou-me.

de tanto amor já se esparziu a carga;

recordo apenas aquela peculiar

inalação que então sobrepujou-me,

em gotas secas de doçura amarga...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 30/03/2011
Código do texto: T2878734
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.