Manhã sem Flores
i
Me pareço a imposição da figura que criei.
Minha vida já não sei, ficou na imaginação
que eu um dia lamentei que não fosse a invenção
que eu tivesse escolhido dentre as muitas que achei
no caminho percorrido pelas marcas da paixão,
pelo fogo do perdão que, debalde, procurei.
Parecia que era um rei que pedia a prontidão
de seus súditos. Serei eu o único e então
boto a água na panela e acendo o fogão,
corto o alho e a cebola, já joguei o macarrão
e uns pedaços de lingüiça. Creio que me lambuzei
no azeite desse molho que eu mesmo inventei,
pois tirei de lá de dentro de um lugar que nunca sei.
ii
Tenho agora a posição de um astro, o Astro-Rei,
que me passa um sermão por achar que não achei
o caminho que ele disse que não era contramão,
mas que foi o que escolhi porque não acreditei.
E, aliás, me insurgi, disse que também fui rei
lá nos idos da nascença, quando em minha mãe mamei,
lá naquela opulência, que só mãe sabe a razão
de criar o seu monstrinho da forma que me criei.
Me agarrei no pergaminho, era a minha proteção.
Bem mais tarde e sozinho, vejo que não vi senão
toda a forma de carinho que não tenho ou não terei.
Me picou uma saudade, a verdade é que chorei
como uma criança tola, medo do bicho-papão
ou de toda a imundície com que não me habituei.
iii
Hoje sobra um vestígio, sobra a fuga da razão.
Esquecer que sem prestígio nunca chega a ocasião.
Mas depois que acontece, você diz então: errei.
Lança mão de alguma prece como as que acumulei
e no fundo aparece o sabor da redenção.
Mas você cai na cozinha. Já levou o escorregão
pretendido pelo molho que escapou do macarrão
que enchia a panela que agora enxuguei.
E as minhas amarguras, todas já depositei,
esquecidas da fervura, pois o fogo apaguei,
no meu vidro de ternuras que guardo no gavetão
desse refrigerador que preserva a condição
de manter inalterado o que não acreditei,
permitindo que se estrague o meu queijo parmesão.