ABISSAL
ABISSAL
Foi do alto do firmamento que pude ver a carne sobre a carne aos rasgos dos abutres,
E a cada um deles, a parte que lhes cabe em fausto deleite da luxúria que outrora fora.
E o homem coabita o homem e é escravo do próprio homem segundo seu desejo.
E foi ouvindo as súplicas da terra em grande tormento que desci,
E, em já se aproximando do horror demasiado, vaguei-me em clamor:
Se o desejo de estar perto for maior que a razão de estar longe,
Então foges para dentro de si que a carne é tua.
Se o domínio for a paixão, fazes uma revolução em teu espírito,
E muda teus conceitos sobre ela, antes que te corroa todo o corpo.
Se a vontade de falar for mais alta, imola teu corpo para purificar a alma.
Se a língua, ainda assim te forjar as falácias das injúrias, atira-a em fogo ardente.
Se a sede de fitar for insuportável, queima-te os olhos para salvar o corpo,
E se os teus pés te embrenham por caminhos curvos, forja-te elos de ferro.
Se as tuas mãos clamam por um afago singelo da carne, livra-te delas.
E se o mundo, em tudo te arrebatas e te afliges, não te apavores
Cai de joelhos e apela para o senhor teu Deus.
Mas se a dor é inexorável e sem trégua, e teu clamor não é ouvido,
Toma tu a tua dor e segue na escuridão abissal do teu coração,
Sem, contudo, alardear teu sofrimento que é só teu.
Ouve pobre alma, o clamor de quem vos leva à luz de Sophia,
Porque és corpo e o corpo é a ilusão da juventude e da vida,
Cega os olhos, reluz a beleza e endurece os corações.
Porém, advirto-o que nem todo pecado será expiado pela dor,
E que nem toda a abstinência te livrará do teu mísero destino,
Assim como tua abnegação não te livrará da iminente morte,
Mas todo sacrifício só será consagrado a ti mesmo para alívio do teu espírito.
Aos efusivos da paixão
De volta ao meu corpo, domina-me a vã futilidade do ser,
E o verbo deve escolher entre o bom e o mau, sendo eles um só.
E o bom favorece o que é do espírito, assim tu o crês,
E o mau favorece o que é do corpo, assim vês tu o que queres,
E o corpo arraiga-se dos sentimentos da paixão e do desejo,
Pois que todos os sentimentos são ridículos,
Mas que vestem a aparência da consciência do bom,
Só fazem sentido nos romances e nas novelas,
Mas que te alimentam como fruto de essência.
Quando contados são apenas tolerados,
Quando vividos, é uma história que só interessa a dois.
Mas há também o enlevo da ira que destrói a alma e o corpo,
Fustiga ao derredor e provoca a solidão dos desamparados.
Quanto à felicidade, se a tens, és um asco de vômito,
Esta provoca o furor da mortal inveja, do fingimento e da máscara humana.
Esconde a verdade nos risos fortuitos e passageiros,
É laço doce que se amarga com o tempo.
O sofrimento, este sim, é verdadeiro e sublime, mostra a ti como tu és,
Tua cara é tua existência no tempo e no espaço,
Teu corpo é tua vida, é só nele que os teus olhos acreditam,
Bom e mau, corpo e espírito elos acorrentados pelos enlevos da paixão,
Aquele pela carne, este pelo desejo sublime da oração,
Escárnio de matéria vil que te mutila o pensamento,
E que descobre no último momento que nada tens.
Mas ai de toda a razão se não fora as chamas da paixão,
Porque entre a vida e a morte só há dois pólos, um tédio e um fim.
Aos traidores
Lanço mão da minha ira sem misericórdia do desgraçado.
Aquele que trai tem sempre um sentimento egoísta,
Que alimenta a ilusão da doce vingança ou de uma paixão secreta,
Sabe que é sórdido, mas se diz dominado pelo desejo humano da luxúria,
E se vale da fraqueza da carne como escudo da própria alma,
Como se um justificasse o outro, deste assevero:
Nenhum fruto vingará da tua carne que não seja maldito,
Porque tua prole provém do que proferes com a língua,
E esta nada oferece aos homens além do que tu és, uma mentira.
Assim tua palavra é sempre ardil à espreita dos crédulos e néscios.
Aguçai teus sentidos vis porque tua hora é chegada,
E sobre o teu túmulo não chorarei porque tu me furtaste a vingança de ti,
E faço da tua lápide a morada dos vermes e da tua cruz o meu cajado.
Teu corpo será o cárcere das faustas misérias dos desgraçados.
Não sentirei falta das tuas orações, dos teus conselhos que não os segui,
Também não sentirei falta das tuas carícias, dos teus beijos, que não os tive.
Não sentirei falta das tuas coxas brancas e do teu dorso amarelo,
Porque tudo foi apenas uma merda de vida que tu levaste nos córneos.
Mas sentirei falta dos teus braços pedindo ajuda antes de morrer,
E da fina lâmina, brilhando ao teu lado com o reluzir da tua alma.
E sobre os teus restos, digo: alimentarão os porcos e os cães,
Nada sobrará de ti, porque nada é o que és e nada é o que serás.
E sobre a tua alma, coitada, farei orações etéreas,
Para que não se abram diante dela as portas celestiais,
Assim, esta triste alma vagará no espaço eterno, infinito e abissal.
Aos inimigos
Eis que vem da escuridão do abismo os lamentos do teu fim sepulcral,
Por que não quiseste ouvir o clamor das palavras de Sophia, condenaste tua alma,
E todos os teus prazeres e desejos transmutaram-se em dor,
E a tua soberba aparência da juventude, refigura-se desventurosa.
Porque da juventude nada resta além do envelhecer da bela aparência.
É chegada a hora do teu juízo final e o que tens em conta é o nada,
Porque o teu castelo era de ilusões e falsas promessas,
Ergueste teus sonhos no cadafalso da tua própria forca.
Vês, quão pobre é o teu corpo na morada eterna do teu jazigo,
Pálido e viscoso, esperando o reencontro com o pó de onde vieste.
Nada tens a dizer além do pranto tardio do arrependimento.
Vês, agora é tarde para que te arrependas da luxúria do desejo,
Pois que o desejo é o teu vício, teu mal teu fim e algoz.
Nem mesmo o barqueiro do rio Aqueronte fará a travessia da tua alma
Para que fiques no mundo suspenso dos mortos.
Teu espírito vagará em negras nuvens de enxofre.
Não haverá luz em teu caminho para que te guies na tua jornada eterna,
Porque assim escolheste o caminho do pecado e eis a tua paga:
Cicuta trazida na taça de Hades e as trevas abismais te encontrarão.
E que o véu negro da morte cubra o teu rosto,
E que a sombra da foice caia sobre os teus olhos,
E que o manto de Nyx cubra a tua alma.
E que a escuridão seja a tua eterna amiga,
E que o Caos erga edifícios no teu espírito atormentado,
E que todo o mal seja em teu negro nome, e cumpra-se.
Leandro Dumont
13/11/2008