Meu dia de Van Gogh
Vincent, meu velho amigo, entendo-te bem, ao cortares a própria orelha como merecido castigo das impudicícias que essa ingrata se atreve a escutar.
São tantas as absurdidades vividas e ouvidas, que dispensável se torna essa orelha excessivamente enxerida.
Ornamento inútil e deselegante, a pender fatigado, em cansados rostos de beduínos pensadores errantes, homens sem meias-medidas.
Em meus dias de angustia desenfreada, Vincent, também nada quero escutar: corto fora minha orelha, ponho-me por outros mundos a viajar.
Mundos permeados de sonhos, constituído de horizontes bem mais risonhos, com flores pintadas nos celestes jardins de Shangri-Lah.
Vincent, meu velho amigo: mesmo a correr perigo, também me recuso a malversar meus escritos, escondendo-os com zelo de proscrito.
Como tu, que vendeste em vida um único quadro, embededando-te com o fruto; uso do mesmo atributo: mantenho a rota de atrito,
Não penso em escrever bonito, apenas dar vida a palavras que representam sentimentos; inadequados e sinuosos lamentos a me incomodar.
Vincent, meu velho amigo: dotado que fostes de genial loucura, carregaste amados girassóis para enfeitar tua sepultura.
Ao contrário de ti, ao invés de uma bala no peito, penso em levar, em minha última jornada, o beijo mais doce, roubado num canto escuro dos lábios de minha ausente amada,
Guardado ciosamente no mais escondido escaninho de minhas recordações, ao abrigo de invejosos escansões – com fita de ouro atada.
Também como tu não possuo muito dinheiro, Vincent. Elegi como dever primeiro, cuidar do espírito, privilegiar a cultura...
...sobrepujar as agruras mundanas, manter a mente, embora acossada permanentemente, ilibada - a alma muito mais pura.
Quando nos pegamos insatisfeitos com o mundo que nos rodeia, costuma nos bater uma incômoda sensação de estarmos dessintonizados, em rota de colisão com o “status quo”. Nesses momentos, que chamo de meu “dia de Van Gogh”, abdico da minha capacidade de ouvir externamente, refugiando-me, como uma arquetípica ostra, dentro de mim mesmo, aonde encontro respostas para minhas múltiplas indagações em minhas longas conferências com meu “amigo” Vincent.
Vale do Paraíba do Sul, madrugada do terceiro Sábado, Janeiro de 2009.
João Bosco (aprendiz de poeta)