A Nossa Embarcação
A nossa embarcação flutuava serena
Em conluio com a onda do mar tão pequena
Num dia quente de sol,
Parecendo sem pressa ou destino
Ou ainda sem algum desatino
Que lhe pudesse alcançar.
Vencera a tempestade
E agora não havia vontade
De sorrir ou de chorar.
Apenas o automatismo
Da manhã de um dia de sol.
A nossa embarcação com tersol,
Livre de ter o que enxergar.
A nossa embarcação alugada
Por nossa estupefação,
Não iria sentir-se obrigada,
Mantendo-se ali de plantão,
Enquanto na outra calçada
A gente via que nada
Havia de contradição.
Nem mesmo a imaginação
De como é que seria
Um dia de insolação.
A nossa embarcação exclusiva,
Não tendo aonde chegar,
Não tendo o que perseguir,
Fizera-se presa do mar
De que não queria fugir.
Queria apenas sorrir
Da nossa indignação.
Talvez ela se redimisse
Dessa tola intenção
Quando no fim da estrada,
Quando no fim da estação,
Sedenta e despenteada,
Viesse a alucinação
Dos ventos fortes do sul.
E toda aquela invenção
Da terrível tempestade
Que lhe fizera tremer,
Que lhe fizera vencer
A mais abjeta saudade,
Que era poder percorrer
Cada um de nós ao extremo,
Como o amante sereno
Que se demora a gozar.
Quem sabe pudesse esperar
Pelo perigo iminente.
E querer com vivacidade
Das ondas altas sorrir,
E querer da liberdade
Escarnecer ou fugir
Com muito mais lealdade
Do que pudessem lhe permitir
O seu conluio com ela,
Com aquela onda do mar,
Como se dá com a janela
Diante da luz do luar.
A nossa embarcação indecorosa
Não queria mais ser livre.
Nem um dedo numa prosa,
Nem um dedo na ferida
Cuja casca impedia
Tenuemente o sangramento.
Enquanto nós ali dentro,
Querendo que ela fugisse
Pro meio do mar, pro conluio
A que nos quisesse obrigar.
A nossa embarcação felizmente
Não nos iria deixar.
Permanecia parada
Na onda tranqüila do mar.
O dia de sol muito quente
Servindo pra testemunhar
Que a nossa viagem acabou,
Que a nossa alegria surgiu,
Que somos só nós e ela
E o beijo que sempre existiu.
Rio, 22/03/2006