Sobrevivente das incansáveis histórias de amor (Marlos Pedrosa)

Poema inspirado no conto "Cinzas"

Cartas pelos quintais

vôos de envelopes secretos

entre gritos e silêncios

palavras soltas brotam da terra

cheio de olhares de sobremesas

cartas de amor apenas.

Lembranças de sonhos beijados

em cada parágrafo o trigo

derramado, na pele das memórias...

Tantas sombras de luas

minguantes na alma

das incansáveis histórias de amor.

Cartas cheias de olhares

doce ira na hora das ausências.

Viagens secretas

singelos encontros invisíveis.

Cartas dispersam no fogo

cinzas que voam para a eternidade

formando nuvens

que regam sinfonias da primavera.

Histórias de amor apenas

que entre o fogo e a chuva dos olhos

fazem fecundar saudades.

Os amores pularam o muro

quando as mãos da ternura e da ira

atiraram fogo nos papéis

feitos pelo suor e a lua.

Beijos lacrados murmuram segredos

na hora que o amor foi escrito

desejos de janelas abertas

procuram alcançar a canção dos lírios

quando outras janelas abertas

escondem-se a lira dos teus olhos

que derramaram fúria e paixão

que antecederam os beijos das palavras.

Cartas de amor e nada mais.

Canta o rouxinol

na janela de outras paixões

quando tuas mãos teciam suas memórias

pelos quintais as lembranças

foram fecundando o tempo

abrindo feridas e versos de amores

desejos de encontros possíveis.

Não foi a lua, muito menos o sol

que descobriram as cartas no quintal

foi algo muito mais além das estrelas

quando teus olhos desceram para ver

surgiram no solo os anjos de outros amores

rezaram o terço das saudades.

Quantas paixões ainda tinham que acontecer?

Quantas cartas seriam escritas?

Depois dos funerais dos segredos

contidos em cada envelope incendiado

o carteiro do outro lado do muro

sente o cheiro das cinzas e chora

o mundo congela no tempo

abreviando as sentenças do epílogo do amor.

Lígia fecha a janela do coração

abre em outro lugar onde o sonho renasce.

O poeta queria viver a sua história

já não haviam cartas pelos quintais

apenas o cheiro das memórias

desce do olhar de Lígia e canta

em sussurros de outros amores.

Sobreviventes das histórias de amor

derramam na pele de outro quintal

outra história de amor.

Quantos sobreviventes registram seus romances

em papéis e soltaram em canoas

pelo rio do desejo do beijo roubado

no jardim do corpo da primavera

chegaram para despir o coração de outro amor

para recomeçar de novo no novo

nas páginas da eternidade.

Lígia deita sobre a lua

entra dentro do sonho

escreve histórias de amor

seu olhar pela janela

viaja para o além dos sobreviventes

seu caminhar feito canção

anuncia segredos do coração

em teu violão nascem cantigas

cheias de memórias de outras cartas

cartas de amor e nada mais.

Foram tantas e entre tantas

haviam lembranças das que não escrevera

do silêncio de cada uma delas.

Há! As que os carteiros queriam ter lido

tantas cartas anônimas

umas com sangue e flores

tantas cartas cheias de notícias

chuvosas, outras onde o sol fecundou seu esperma.

Tantas cartas... com lembranças

nascimentos de fetos no afeto dos sonhos

umas chegaram escondidas, ridículas...

outras lacradas com marcas de beijos de batons

algumas revelações de despedida

outras, noivas e separadas.

Tantas cartas anônimas

sem endereço... órfão do acaso

carta Mãe, carta Filho, carta Sonho

carta Vento, carta Feliz!

Solitárias numa noite de lua minguante

cartas de amor e nada mais...

E eu, este poeta sem ter recebido cartas de amor

sou um desses sobreviventes

que não joguei cartas pelos quintais

alegro-me com as cartas de amor.

Escrevi tantas que entre tantas sobrevivi

foram cartas poema

na poesia das ilusões perdidas.

Há cartas! E mais cartas!

Como dizia Fernando Pessoa

cartas de amor ridículas

se não fossem ridículas não seriam cartas de amor

e no louvor dessas cartas

que anuncio vestido de suor e lua

no gesto sublime em Lígia

esta carta poema na doce ternura de teu coração.

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 18/05/2008
Código do texto: T995235