A completa dissolução do ser
Um semblante mediano, vindo de uma pessoa normal
Que não se destacaria numa multidão cinza
Mesmo se usasse as roupas mais coloridas disponíveis,
Os ornamentos mais elegantes, os sapatos mais caros.
Pegue este indivíduo, amarre seus braços
Prenda suas pernas e tape sua boca.
Sente em sua frente e mantenha contato visual ininterrupto,
Pondo abaixo toda muralha que cerca sua retina,
Entre no espaço vago que já não guarda mais a sua autoestima
E aguarde alguns segundos.
O primeiro vazamento será suave, pouco volumoso
Enquanto escuta a tristeza esvaindo pouco a pouco
À medida que a pressão também escapa.
Escute o arrastar da lágrima solitária contra a pele enrugada,
Sopros de palavras soltas, sem destinatário
Que nunca encontraram seu túmulo,
Senão a imensidão onde foram armazenadas,
Colidindo umas com as outras,
Ganhando novos significados e gerando novas palavras,
Que nunca veriam a luz do dia,
Ou seriam ditas para outro alguém.
Alguns estalos depois e o fluxo aumenta,
Dando espaço para pensamentos mais abstratos,
Impulsionado por sentimentos pesados,
Que cantam óperas sobre violência;
Gritos grotescos, violoncelos na cadência,
Percussões extremas, um atestado de incongruência;
Cadeiras vazias, filas inexistentes
Um show particular para alma nenhuma;
Nenhum cartaz exposto em qualquer lugar.
Mas não se preocupe, pois a atração principal
É a próxima que irá surgir.
O mesmo indivíduo amarrado em sua frente,
Mas desta vez em pé, solto, parado
Tentando entender o que tanto faz errado,
Para estar preso e enjaulado,
Num lugar adormecido
Que também o faz querer dormir.
E ele fala, fala, fala
Discorre sobre diversos temas;
Sobre a vida, sobre a morte
O tempo entre um e outro e seus dilemas,
Ele olha para trás e se surpreende
(Como há anos ninguém fazia)
Com aquela pobre criatura amarrada
Que agora chorava, e sequer sabia
Que o fazia por saudades
E um punhado de alegria
Por ver que um pouco dele ainda existe
Num lugar que conserva,
Aquele resto de brilho que um dia já teve,
Mas, que na conjuntura atual, não resiste
O passar da barreira da pele, para o externo
Tocar o ar puro e eterno
E se espalhar para todas as direções.
A conjuração olha para você
Agradece a atenção.
Abre um sorriso tímido e lhe estende a mão
Mas antes de tocá-la, os dedos caem
A pele da mão derrete,
A tragédia se espalha, e por completo o acomete
Enquanto você assiste
Os músculos que se contraem violentamente,
Os nervos e tendões que piscam intermitentemente.
O esqueleto resta estático por alguns segundos
Até se desfazer numa nuvem de poeira.
E este era o estopim
Para enfim vermos o que tanto esperávamos.
Enquanto a poeira ainda abaixava,
O indivíduo amarrado ia se contorcendo desesperadamente
(Como um animal que prevê o fim da fila de abate)
Ele debate consigo, contigo
Com qualquer coisa
Com qualquer ideia
Com qualquer poeira
Mas não haveria tempo para tréplicas de qualquer forma;
Pois quando este cai com sua cadeira,
Já é tarde demais.
O defunto agora se desfaz e se reconstrói
Com menos de um segundo entre uma etapa e outra;
Nuvens negras, tóxicas, densas lhe fogem pela boca
Tomam o ambiente, e retornam
Num ciclo repetitivo, acelerado
Junto da pele derretendo e se refazendo,
Dentes caindo e outros nascendo
Gritos abafados pelo fluxo da fumaça.
Tocado pela benção da vida,
Ao mesmo tempo que a morte o abraça;
Vivendo num linear e outro,
Matando a si mesmo de desgosto,
Não importando quantas vezes ele renasça.
A completa dissolução do ser é gráfica, agressiva
Rápida e inevitável.
A dor que acompanha é o castigo pelo evitável,
E por cada decisão errada que tomou sabendo que de nada valia.
Não há conclusões positivas, não há moral no fim do episódio.
Ele enfim se levanta. Olhos carregados de ódio.
Ainda mediano, sem destaque
Senão o olhar vicioso e o cheiro de enxofre
De quem visitou os confins do inferno,
E voltou de lá com uma pedaço dele.