COISIFICAÇÃO

Tenho, silenciosamente,

Observado o silêncio das coisas.

Coisas. Apenas seres do cotidiano trivial.

Coisas que decerto têm mais sorte que o Homem.

Porque não têm sentimentos.

Coisas que não mudam em si, que apenas ficam ali,

a zombar da perdição dos olhos distraídos.

Coisas que parecem não passar, absortas, impermeáveis ao tudo que segue.

Coisas inanimadas da vida que já tiveram.

Sem nunca saber que a tinham.

Essas coisas pétreas, que fingem eternidade

mas que são similares às gentes também no destino e nas vaidades.

Sim, isso mesmo!

Coisas também têm destino não revelado!

E vaidades abissais!

Como a taça de cristal ,ali, empoeirada na prateleira do bar,

a que brindou tantas festas que só pareciam ser para sempre.

-Auguri!

Aquela carta de amor, tão viva, ora esquecida na gaveta, amarfanhada no tempo que se negou a ser seu palco.

O disco de vinil, com tudo que soava de melhor, que hoje soa ainda mais "blues" , sem plataforma de existência.

Coisas vaidosas...

Os tantos títulos dependurados nas paredes tão caiadas das tantas "descivilizações".

Os doutos saberes "sem evidências" que sequer interessam às mídias que se nutrem das vidas mortas.

A gravata "black- tie", tão imponente, desbotada na sua seda, aposentada de seus cenários glamorosos, e que ainda luta para ir ao passado tintureiro da esquina, aquela que não existe mais.

A blusa preferida, um dia no alto da butique da moda, a que foi para o crematório sem ter desfilado na passarela da vida.

O perfume francês- jurado o melhor!- que já perdeu a fragrância no tempo, mesmo lacrado na embalagem; justo ele!- que acreditou e esperou pela melhor oportunidade de perfumar o mundo.

Ali na escuridão dum armário entreaberto, um salto quebrado no primeiro tropeção do palco, resfolegante, o daquele sapato da grife falida-mais uma!- que sempre fora inacessível aos pés dos que caminham nus de tudo, nas calçadas das coisas dum tempo de empedernido destino.

Enfim...quantas coisas, tudo do nada...

Sorvo mais um fôlego.

-Auguri!

Tenho, silenciosamente, tentado ouvir os reveses das coisas silentes,

dentre o embargo de suas vozes nesse mundo incandescente.

Elas me ensinam sobre o tudo e sobre o principal.

Ressinto:

Invejo todas as coisas inanimadas, as que não palpitam...

Nessa existencial "gentrificação".

Repenso no reverso do último verso:

"E a Humanidade se matando por essa surreal coisificação..."