Diálogo caipira

Ô doutor... ocê fala difícil

Palavras-carramanchão

Bonitas de dizer

Bonitas de sentir

Ô doutor, ocê sabe de tudo

Conhece música e arte

Conhece elefante e desodorante

Eu, só conheço a música que os pássaros sabem cantar

e tenho que confiar

que eles adivinhem quando estou triste e quieto

e, estou bão para escutar

Ô doutor, esse vaga-lume

É minha lâmpada

O lampião aqui é luxo!

O sol vem logo de manhãzinha

E pronto, aquece tudo...

O orvalho sobre a flor,

A manta branca de nuvem

A mata lá fora.

Ô doutor, sou capiau

Conheço capim, viola e mingau

Ocê conhece outro mundo

Telefone, computador e televisão

Antena, riqueza e ilusão

Meu espetáculo se estica

lá longe do horizonte

E é tímido e arredio

Nos dias de chuva converso com as águas

Nos dias de seca converso com a terra

E diante da lama, permaneço mudo,

Matutando, matutando...

Sou cabreiro, espio e não vejo

Pra ocê não, tudo está às claras,

Iluminado, clareado.

Há lamparinas, candelabros e luz elétrica

Há campainhas, escadas e ética.

Não há uma nesga de sombra ou escuridão

Ocê guarda as coisas na gaveta

Eu, guardo no bolso, na bota

Ou deixo sem guardar mesmo

Os anjos guardam por mim...

Permaneço mudo e inquieto

Não me arrelio

Não apeio o cavalo

Não capino a relva

Hoje tirei o dia pra matutar

E ver apenas esse passarinho bonito a piar,

A ensaiar um canto e uma dança

Sob a chuva fina

Ocê se quiser pode chamar de balé

O João-de-barro a se esconder do frio

O bicho preguiça a andar bem devagar

A paca a correr lépida pro mato

E as cobras?

Ocê tem medo de cobra?

Tem sim, vejo no seu olho.

Eu, não.

Confesso a ocê,

tenho medo mesmo,

É de gente....

Gente mente

Gente furta

Sem avisar

Cobra não, tem umas que até tem chocalho

E anunciam antes que vai dar o bote.

Gente chora

Fica triste,

Morre infeliz

Cobra não, cumpre sua sina

E segue, troca de pela,

Engole sapo, rato

E cumpre seu ciclo.

Gente troca de gosto

E não cumpre seu ciclo

Traí logo a primeira oportunidade.

Mas hoje, só estou matutando...

Ô doutor, fica pra nós prosear um pouco

Ocê fala tão bonito,

Tão sentido

Seus olhos brilham a cada palavra

Meus olhos lustram as minhas...

Escolhidas a dedo

pelo acaso de nosso encontro.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 05/11/2007
Código do texto: T724836
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