Poética - A dor que ganha vida
De meus passos trôpegos por entre os precipícios da vida, irrompeu um rubro abismo na superfície da
dor que antes ocultava-se nas fundas camadas da pele.
A ferida se abriu como o bocejar da boca de um abismo adormecido; o qual subitamente desperta em uma erupção de demônios antes encarcerados no sono da epiderme.
Sob a ferida borbulhavam as lavas feitas de coisas inomináveis que antes se agrupavam caladas no tempo, até se eruptirem por um descuido.
O meu tropeço psíquico lançou à superfície todo o incêndio interno volvido em meu âmago.
Do meu sangue expelia-se um conglomerado de dores antigas; e todas delineavam as funduras de uma forma rubra e indefinida.
Uma criatura moldava-se ao sair de seu cativeiro feito de tecidos e vísceras expostas.
E teus olhos de lamparina fitavam-me perante a noite, fazendo arder a pele com todas as visões que pungem as camadas violadas da memória mais escura.
Do abismo em minha ferida mais oculta, a criatura transpirou numa viscosidade que fazia-me doer fora de mim, e pensar com a minha dor.
Olhei para a forma pura que jazia em pé e almejei desintegra-la.
- E como desintegrar a dor que consome a alma? Pensei eu.
A criatura permanecia autônoma e viva; um corpo que crescia conforme eu o negava.
Foi quando decidi abraça-la e senti-la de maneira profunda. A apertei sobre o meu peito e desfiz-me em lágrimas de sangue.
A apertei tanto, que em pouco tempo a criatura não mais me suportava.
Eu já não a negava, e então a fiz voltar para dentro da carne já desfeita e cicatrizada.
O rubro abismo em minha pele,
fechou-se como os lábios de uma papoula nos jardins do tempo; enquanto eu sangrava por entre o aroma de um sono imperturbável.
Então tu queres se livrar da dor?
Sinta-a profundamente até que ela
Se dilua no tempo.
Contemple-a como tu contemplas
o êxtase de um momento feliz.
E ela já não te subordinarás.
Assim será extraído o ópio amargo da vida.
Substância analgésica estancada da própria ferida.