A espetaculosa morte do homem que não criava
Foi ao cair do sol
De uma morna tarde
Duma incipiente primavera
Quando teve fim a rotina burocrática
De sua monótona vida...
Parou para atravessar a rua
Mecanicamente, como era de hábito
Controlado, cordato, contido
Quase sem sal...
E tudo iniciou numa fração de segundos
A rebelião de suas monstruosas
E fantásticas criaturas interiores
Que, por medo, preguiça ou mesmo falta de fé
Ele condenava a perecer,
Natimortas!
Nos seus abortos diários do não-criar!
De pé, encarando o semáforo
Contemplava passivo o sinal vermelho
Quando, com vermelho-tinto
Inundou a rua, seu sangue profuso...
Atropelado? Não, antes fosse...
Ele explodiu. Como?
Ninguém sabe ao certo...
E sabem, ainda menos
Explicar o bizarro cortejo
Das fantásticas figuras
Surgidas de sua morte...
A começar pelo Navio Pirata
Que singrava ousado o rubro Mar de Sangue,
Brotado de seu peito
Seguido por um Corcel Branco
Com asa de anjos, tal qual Pégasus...
E que dizer dos pequeninos
Diabólicos, gargalhantes,
Vestidos como duendes
A saquear, travessos, as pessoas perplexas?
Os trens antigos, os zepelins e os carros do futuro,
A conduzir uma bárbara multidão de ideias alucinadas
(Mas, que ainda assim tinham algum sentido)
Decretando a queda da Roma da Razão...
Essas criaturas todas,
Quimeras absurdas!
Brotaram livres afinal!
De suas veias e pensar...
E, seu expirar final,
Deu-se, quando, rompido em mil pedaços
Libertou o mais ancião e sábio dos Dragões
Montado pelo último dos últimos Nobres Cavaleiros...
E, para fechar-lhe os olhos
(Ou o que sobrara deles)
Surgiu do seu coração em frangalhos
A mais bela Musa
Pairando suave...
Os cabelos longos como o fio de Ariadne
Cobrindo-lhe o corpo nu...
(Ela era aquela a quem ele nunca tivera a coragem de cantar!)
E tudo acabou nesse instante,
Sem nunca ter começado...
O que fica disso tudo?
Um conselho aos homens que (imaginam)
E não criam...
Cuidado com vossas ideias
Que jazem em qualquer canto...
Elas jazem à espera
De forma, de cor, de encanto...
Nega-lhes o encanto?
Incauto!
Elas jazem a espreita...
Olha que um dia se rebelam!
(Parafraseando Neil Gaiman, a diferença entre um escritor e alguém que tem ideias é que o primeiro não teme o “ridículo” de dar-lhes a vida... E talvez, isso, um dia, ainda lhe salve a mesma...).