a morte do palhaço
no meio do picadeiro o corpo do palhaço
estendido
estará morto?
apenas dorme fazendo palhaçada - diz um
foi pisoteado pelo elefante - diz outro
mas o circo não tem elefante
o cravo vermelho no peito - foi um tiro - diz um terceiro
e a bailarina chora no canto com medo do lobisomem
que a espera no fundo do corredor para estuprá-la
o menino tem medo do escuro e esconde a cabeça
sob o travesseiro
os monstros sob a cama se divertem
quantos anos tem o palhaço? ou tinha?
a verdade está nos detalhes - advoga o advogado
o vento assobia nos cabelos da mulher barbada
há um aparato policial para prender o assassino
que está à solta no parque de diversões
companheiros a hora é esta - o sindicalista
convoca os operários para uma greve
um risco no céu anuncia a tempestade
no chão do picadeiro chovem flores sobre
o corpo do palhaço
estará ele morto? ou apenas se diverte
com a dor de quem finge que chora sua morte?
no cinema ao lado um filme de David Linch
todos os que fazem parte dele também já estão mortos
prega-se em todos os cantos o fim dos tempos
o homem é o lobo do homem
os sonhos sonhos são - repete o poeta no viaduto
a vida passa voando sobre sua cabeça
se esborracha num dos pilares da civilização
a madrugada traz o pio da coruja
o menino que tremia de medo vestiu sua fantasia de super-herói
talvez ainda haja esperança para os que sofrem
disse alguém já à beira das lágrimas
a lua iluminou a estrada deserta por onde passa
com todas as luzes acesas uma ambulância cheia de porcos
agora você está definitivamente num filme do David Linch
a pasta de amendoim azedou e está coberta de vermes
no asfalto a pele luzidia da lontra desafia todos os argumentos
no picadeiro o palhaço parece que ri dos que choram
na verdade ninguém está chorando
a bailarina resolve enfrentar o lobisomem e pede conselhos
à mulher barbada que louca de raiva enxota as abelhas
que teimam em pousar em suas orelhas cheias de açúcar
não há mais esperança - solfeja o contorcionista
arriscando mais uma manobra no carrinho de rolimã
a anã vestida de freira cheira o cheiro
de mato da flor do peito do palhaço - o olho vidrado
a música explode da orquestra do poço do teatro
as cortinas se abrem para mais um pôr do sol
ninguém acredita que os sonhos sejam apenas sonhos
há no ar um gosto azedo de revoluções passadas
o menino que virou homem-aranha e a bailarina
que anseia pelos braços do lobisomem passam um pelo outro
e não se reconhecem - a lua vai alta no céu
a mulher barbada reclama de fome o contorcionista gargalha
a flor do peito do palhaço está murcha
o mundo está murcho
a vida está murcha
já se foi o tempo em que para tudo havia um motivo
morreu a razão
o palhaço não está morto - suspira e reza
para um deus há muito enterrado
no coração da floresta amazônica
há uma bailarina e um lobisomem - o palhaço gargalha
do fundo do poço a mulher barbada puxa o balde
dentro dele há um menino vestido de lanterna verde
os gatos miam assustados e o bode da sala é abatido com um facão
fechou-se o círculo em torno do altar
vamos todos para para copa - o jantar está servido
há vinho azedo e pão ázimo sobre a mesa
o palhaço não sabe mais se ri ou agoniza
a procissão do cristo morto adentra o picadeiro
o trapezista despenca do sonho e cai na rede de cabelo
da mulher barbada - todos choram e riem ao mesmo tempo
o médico dá a extrema-unção ao elefante que não existe
o circo paga todas as suas contas com as lágrimas do menino
vê-se que o palhaço revira os olhos para o malabarista
o passado está maduro sobre os ombros do lobisomem
a bailarina ajoelha-se em contrição - não está triste
embora chore um pouco
o menino vestido de super-herói dança uma valsa
fazendo piruetas e pintando o rosto - o olho esquerdo
já está todo branco e vermelho - e ele começa a retocar o olho direito
a mulher barbada desespera-se e joga no poço um rosário
as contas bentas que lhe dera um papa
o palhaço já não agoniza e ri - apenas observa
na estrada escura os carros do circo atolam na lama
o elefante inexistente levanta a tromba e aceita o amendoim
que o mendigo lhe oferece
não há esperança depois da curva da estrada
a tempestade aumenta o sofrimento de todos
menos do menino vestido de super-homem
que estala o chicote no lombo de cavalos etéreos
não morra palhaço - uma voz - morra palhaço - outra voz
bailarina e lobisomem atacam a mulher barbada
roubam-lhe a última moeda de prata
o menino está doente o vento suspira nas papoulas
a estrada é longa e longo o pensamento dos homens
talvez haja poemas suficientes para salvar um só
ao menos um - suspira a bailarina
vestido a caráter o menino encanta plateias
salva-se o circo e o elefante brame suspenso em duas patas
toca o tarol com precisão o chefe de cerimônias
anuncia o fim do mundo no globo da morte
o palhaço na garupa da Harley-Davidson gargalha
apagam-se as luzes do picadeiro
poetas e sindicalistas se unem pelo desprezo geral
começa a função - desfilam monstros marinhos
e deusas gregas portando ânforas de ouro
o ciclo se fecha o circo treme e freme a morte entra no globo
o globo da morte entra em convulsão
o palhaço no meio do picadeiro apenas sorri agora
a vida é sonho e os sonhos são pesadelos
os assassinos estão todos despertos e devidamente perdoados
a polícia recolhe os destroços do nada
do viaduto para o mundo grita o poeta - acabou a palhaçada
que vão todos para seus lares e aborreçam-se
cena final e abissal: o menino vestido de super-homem
pisoteia o peito do palhaço
22.6.2015
24.6.201
Blog TRAPICHE DE VERSOS E AFINS:
https://trapichedeversoseafins.blogspot.com/2015/07/a-morte-do-palhaco.html