As águias
Quando minhas preocupações
Cabiam na minha rua
No meu quarteirão, no meu bairro
E a luz laranja do sol se desvelava seminua
Filtrada pelos véus dos cirros
Do céu rajado
Vi chegar como ameaça
De onde o horizonte desmancha
E onde o céu com a terra se congraça
Duas sombras, duas manchas
Duas jovens águias
Que em minhas escápulas pousaram
Aninhadas nos meus ombros
Em minhas espáduas se instalaram
Não havia ninguém
Que de ficar as demove-se
Aquelas bestas-feras
Cada garra à minha carne arpoa
Seus bicos de torniquete
Estalando como quem caçoa
Dos patéticos homens tão aquém
De toda sua espera
Muitos céus passaram na vida
E os pássaros cresceram comigo
Seu peso curvando meu porte
Minha pele em palidez de morte
Protegida do sol da lida
Pelas suas asas, meu abrigo
Como todos os homens eu me queixava
Reclamava e lamuriava
Por tão pesada e abominável
Tão malvada e férrea carga
Um dia as nuvens marcharam
Contra minha cidade, meu mundo
Exaladas da boca do céu
Fazendo toda gente réu
Como os fumos que brotaram
De imenso charuto de chumbo
A chuva caiu com fartura
Em terrível e vítreo flagelo
Punindo a cidade desde as alturas
Como vara de marmelo
As águas ferozes tomaram as ruas
Somaram-se outras chegando a cintura
Rosnando e querendo
Nos devorar
Molhados e tremendo
Vendo o mundo se acabar
Enquanto a inundação seguia portentosa
As aves abriram suas asas assombrosas
E todo o peso que na vida me esmagou
Todo o peso que me oprimiu
Às sumas alturas me alçou
Quando cavalgando nos ventos subiu
Abaixo de mim eu vi
O monstruoso caudal
Que destruía, viperino e visceral
A cidade onde cresci
Enquanto as águias me levaram
Ao sol de onde partiram
Para morar junto de si
Para sempre