VERSOS CONVULSIVOS SATÂNICOS (em construção)

**** FINALMENTE

Eu conto porque vi o desfecho, mas só recoloco na moldura a cena final desse ato incompleto, recrio o resto porque cheguei tarde ao átrio, ao patíbulo tétrico onde o fim da macabra história me surgiu entre raios duma noite de feroz tempestade. Eu seguia um gato preto nesta rua e dei-me encontrar na casa do velho Navarro. Mais tarde li uns rascunhos de palavras soltas parecido com receitas ou sonetos convulsivos sem métrica, era seu diário, dele percebi o que havia acontecido ali...)

Era uma vez um velho cansado, era velho e cansado de estar no mundo,

ele sentia-se ímpar alheado, um apátrida e por isso tinha alinhado seu desejo mórbido por companhia ao destino certo de morrer breve. Foi quando se propôs costurar restos humanos, cozer dos mortos pedaços apodrecidos em covas no antigo cemitério. O Velho resolveu trazer à vida apenas o pior encontrado em cada um dos corpos que achava, o quanto deles era na carne podre sinais da mentira que viveram um dia. Corpos putrefatos, abandonados de vez pela família, e antes, triste sina, sequencia mais triste ainda abandono dos seus entes queridos que sofreram enquanto pareciam vivos. Teria sido o abandono o chamariz da escolha, viveram a própria morte lentamente em vida, e nas tumbas silenciosas e frias, nos mausoléus sombrios, sofriam na espera eterna da morte infinita.

Na sina de sobrepor morte e morte, o velho criou sobrevida emendou erguendo num só corpo hibrido seios, mãos e vulvas, mas também pedaços de homens nascidos bem dotados, homens que foram orgulhosos em vida de nada terem sido, além disso, que os distinguisse.

O velho cansado sonhava mimese aparelhada e resoluto buscou auxílio na alquimia das bruxas e dos magos ancestrais, desconhecidas do público, perigosa a feitiçaria. Fechou livros proibidos já muito lidos, tomou notas para compor uns versos convulsivos e rascunhou os versos satânicos respingados de sangue, versos de excremento, de sede e vísceras que em minhas mãos ganharam ritmo.

Depois de muitas tentativas animado, o velho viu-se cara a cara com a forma definitiva do seu um autômato: tinha na feição a estampa recortada dos séculos e no corpo, agora retalhos costurados, diferentes épocas como se cada cílio de tamanhos diferentes fosse registro do tempo macerado. Também a mandíbula arqueada era duas metades coladas, a arcada dupla horripilante era mácula feminina e as duas pernas, diferentes uma da outra ligadas à pélvis, dividida o corpo ao meio onde os genitais se completavam formando um duplo ser que não era homem nem mulher. Das apodrecidas emoções dos cadáveres nem sinal da aparente vida que levavam. O novo ser hibrido, antes em paz abandonado na perfeita solidão das partes mortas, abriu um olho negro profundo como a noite enquanto piscava o outro que era de um verde raso.

Quando ali cheguei a criatura estava pronta. Pronto, a Criatura era um poço de almas perdidas a unirem-se, vinha a brotar em solo estéril adubado, um novo mundo com suas velhas catedrais interiores inundadas de sombras, de sombras pegajosas e majestade intocável – a Criatura estava pronta, fiapos de carne podre e tendões amarrados com fios de aço, argamassa atemporal nas mãos repletas de catedrais menores cujo interiores, tão menores e igualmente corruptíveis, eram corpos sorvidos para dentro dela. Estava pronta! A monstruosa soma viva de testículos e vulva, deu-se ao mundo natural numa noite escura e fria de perfume amadeirado como ao que havia em salas de incenso quando nos altares de adoração um deus morto nos sorria. Sua pele, da cor da madeira da tina dos carvalhos nos toneis, semelhante a cor da terra molhada em torno do lagar, era suave inebriante como o perfume que deu forma à postura desenhada que agora, sentada ao lado do velho Navarro, de terno de linho e sapatos pretos afiados, toma tudo à volta por alvura de máscara sem expressão numa escura bifurcação, fundo de vagina inundada que impele ao pranto agradecido, um lamento ao contrário.

Vem do hibrido autômato sonambulo o perfume. É dele o semblante enigma de lunar brancura, de intocável e perfeita ferida, semente da uva no bago expectante. Ele transfigura, somos nos ares...

: o vinho estocado que encharca o carvalho

a reservada mistura destilada

o odor suave do sexo não lavado

o coito severo

a ausência do beijo

a memória preservada

o que já é resto onde pensava-se o inteiro.

Mas o que eu digo? Tudo isso invento dos versos que tinha lido, imagino... Ao ler a experiência do velho fui agraciado ou maldito? Também eu, ébrio de pisar o lagar manuscrito, sorvi da tina o éter levedo e dei por mim em nuvens abrasivas do fervor lascivo. Consumi, fui consumido. Os versos diabólicos eram a soma, a criatura, o criador e o vazio. Se fui mesmo penetrado ao meio até a mente pelas mãos desse maldito, quem me visse levitando limpo durante o lido, pairando sobre o chão esvaziado e mudo, seria igualmente tocado pela tenaz incandescente do metal derretido onde os lábios juntos costuram o silêncio... Se fui mesmo purificado, retornaríamos em coro ao maldito grito.

Finalmente - Fala! Fala maldito...

A nova criatura, embrião-mescla de Tirésias e Sísifo, eco arremedo da força, um triz, é a ameaça da vontade dos homens de boa vontade. Soergue-se do lastro da palavra a coragem e viril avança sobre os escombros para dar sustento à carne espezinhada .

Oh! Impotência palavras tortas, brandas insuficientes mais que mortas, inútil... inútil... inútil...

Finalmente - Fala! Fala maldito...

Repito: na moldura a cena incompleta eu pinto, é só oque no desenho do relato disperso parece corpos revestidos de anseio e ainda despidos sobre a carne crua. Eu apenas sustento o lastro que o rastro da palavra do velho Navarro ergueu com a coragem falida de quem abismos o salto ameaça mas engole o arremedo da vontade que sobre tudo avança.

Fala, fala! Gritava o velho... Finalmente – Fala, maldito...

Gritava a voz cansada mais ébria de pisar o lagar que dele beber na tina. O velho mais faminto, mais sedento... Mais velho! Sorvido e seco e já pertencido a coisa criada, o Criador sentiu que faltava uma língua que saltando no úbere aberto que era a boca vala da coisa viva jamais pensada expressasse numa única palavra o mistério do além de onde vinha ressuscitada.

E quanto mais queria ouvir uma palavra que fosse viva de fato, em qualquer que fosse a língua, o velho Navarro fez a sua última escolha num gesto desesperado.

Fala, maldito! Finalmente...

Mais por constrangimento que por ânsia do sacrifício, o velho tomou de uma faca de cobre o corte certo que a lâmina tinha e fez da própria carne, a carne do músculo de sua língua, a língua que agora enfia goela abaixo do monstro que à seus pés chora em delírio.

Finalmente...

Para figurar tanto nos versos como na vida, o híbrido medonho, o autômato sonâmbulo que da letra maldita ergueu-se líquido como sêmen não ejaculado, como grito parturiente ou pedido de socorro negado, amparou o velho Navarro que sangrou até a morte. E esfregando em seus lábios descarnados o vão aberto da boca agora cheia da sua língua que mais parecida uma farpa, uma vírgula mal traçada, uma praga saída do velho desgraçado, no destempero da agonia, ao ver-se de pé vivo mais uma vez para o resto da nova existência sozinho, a criatura apanhou da mesma faca o mesmo corte agora cego e o pulso abriu gemendo a dor feliz de um doce lamento.

Quando aqui cheguei, perseguindo a escuridão atrás das sobras e do negro gato tão preto coma a noite sem os raios, ambos já estavam deitados quase mortos. A criatura medonha lambia o jorro vermelho-betume pulsante em seus retalhos de braços costurados e com a cabeça na direção da porta que eu abria sem saber do que ali se passava, pronunciou a única palavra alcançada... ‘finalmente’.

FIM

A palavra é a expressão do espírito, FALA!

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 28/10/2016
Reeditado em 27/02/2017
Código do texto: T5805391
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