COBRA

"Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto."

Franz Kafka

Minha visão escureceu

O sibilar veio de dentro

Uma língua bifurcada

Saiu da minha boca

Testando o ar pegajoso.

Senti os ossos se mexendo

Ficando moles, ganhando

Movimento, se arrastando

Sob a pele, esticando-a

Em ângulos disformes

Perdendo toda a densidade.

Tornei-me uma massa

Escamosa e longilínea

No chão, de cabeça triangular

Rastejando de barriga para baixo

Serpenteando pelos caminhos

Tortuosos da minha casa modificada.

Presas se alongaram

Pingando letal veneno.

Meu banquete:

Ratos mortos

E minha casca deixada.

Eu me tornei o mal

Uma cobra ídolo

Asquerosa, representativa

Da cessão inexpugnável à tentação

De todos os meus ofídicos pecados.