fossa rasa
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o portavoz veio à reunião com toda cidade
contarnos o q houve a nossos filhos.
contounos como os criminosos os sequestraram.
contounos q os criminosos eram também nossos filhos.
contounos onde cada tiro perfurou cada um.
nome por nome: parte por parte: tiro por tiro.
depois contounos como cortaram seus corpos como porcos.
articulação por articulação: membro por membro.
os mais sensíveis choravam
pelo terror q a descrição causava a todos.
o portavoz continuou sua inabalável narrativa
contando como as parte foram queimadas.
apontounos num mapa pregado na parede às
suas costas onde os restos mortais foram encontrados.
estavam em fossas rasas montanhas de ossos misturados
como de galinha depois dum farto jantar.
um tiro soou por todo salão:
a primeira mãe se suicidou.
ninguém gritou nem tentou impedila.
mais alguns tiros ressoaram pelo silêncio pavoroso daquele lugar.
o portavoz retirou uma folha do bolso da camisa
e começou a leitura duma nota oficial.
‘o governo central não tem responsabilidade pelas mortes.
o governo central cansou: cansou de cada um de vós.
o governo central decidiu agir.
o governo central tomará as decisões q devem ser tomadas.’
o salão fora tomado por bochichos e mais alguns tiros secos
enquanto o portavoz se levantava da bancada.
solenemente alçou a voz ‘o governo central cansou de vossos filhos
criminosos q mancham a nação com vosso sangue podre’.
desceu da bancada e caminhou indiferente entre nós em direção à saída.
olhoume pediume a benção: ‘benção, filho’. ele mesmo trancou as portas por fora.
o governo central decidiu atear fogo em nossa cidade.
impedindo q mais crimes desumanos pudessem ser feitos por nós.
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