CRUZES DE URTIGA

(Chamo a atenção para o fato de que cada estrofe está realmente em formato de cruz e foi desformatada ao transcrever.)

CRUZES DE URTIGA I – 27 fev 2010

és, afinal

fato irreal

nessa mortal

incompreendida

sentina amarga que chamei de vida

todo esse tempo que a tarefa apaga

satisfação que outra tarefa esmaga

relâmpagos minúsculos, a que ajunto

um rendilhado de sonhos, em defunto

coriscar de negror no céu azul

do norte ao sul

mágoa total

no pão banal

do amor sem sal

CRUZES DE URTIGA II

é cor de fel

esse hidromel

mofado mel

que na alma cai

não é a cor de teus dedos que me atrai

eu busco em vão o gosto da saudade

não me alforria de ti a liberdade

são teus grilhões que anseia minha loucura

é a podridão que busca a semeadura

é mais morrer que procurar o bem

nisto também

fardo infiel

ódio novel

no amor de gel

CRUZES DE URTIGA III

eu beijo agora

mofada aurora

um som de amora

cor do desejo

e mergulho sob a luz do plenilúnio

molhado firmemente no luar

sem sequer os cabelos ensopar

mas me projeto nesse igual instante

na sombra azul do apelo amargurante

navegando nos ponteiros do infinito

tudo está dito

só resta a lua

que ela flutua

no céu conscrito

CRUZES DE URTIGA IV

felicidade

é falsidade

que um dia há-de

sumir inteira

toda promessa apenas barulheira

e quem nela acredita apenas tonto

somente cai nesse vigário conto

quem não lamenta ser desiludido

só no concreto mesmo tenho crido

no resultado que me cruza a mão

que a oração

sem amizade

é a opacidade

da humanidade

CRUZES DE URTIGA V

na zombaria

da fancaria

de noite e dia

fui iludido

não é que tolo sempre tenha sido

é que guardei na alma de criança

a chama verde-pálido da esperança

de algum dia receber um dom gratuito

mas pela vida tudo foi fortuito

e a crença inteira deveria ser finda

mas eu ainda

nessa elegia

querer queria

que amor sorrisse

CRUZES DE URTIGA VI

são os moçárabes

muxarabis

sobre arcos árabes

arpéus de sangue

precipitados em doidas ogivas

que me cederam este desvario

que me revestem desse antanho brio

nessa remota ascendência minha

dessa donzela que podia ser rainha

mas foi roubada por um mal de amor

e em seu ardor

tudo largou

e se entregou

a quem amou

CRUZES DE URTIGA VII

na verde luz

que me seduz

eu vejo a cruz

da encruzilhada

nenhum caminho me conduz a nada

mas tomei o meu primeiro sem saber

até que ponto o posso percorrer

até que encontre outra cerrada porta

até sofrer o que o destino corta

a mão esquerda a roubar da mão direita

bela desfeita

com olhos nus

me trouxe a luz

a que me expus

CRUZES DE URTIGA VIII

meu nascimento

breve portento

um só momento

tão repetido

à luz do meio-dia fui nascido

com certeza não foi na estrebaria

mas no hospital um quarto não havia

levaram minha mãe para o salão

nessa mesa que usavam em reunião

sob as vistas dos velhos diretores

sem mais demoras

nasci depressa

viver não cessa

melhor cabeça

CRUZES DE URTIGA IX

não vou ficar

neste lugar

sem me abrigar

em algum lagar

dessa desfeita em que me encontro agora

busco em vão a proteção da lua cheia

que até o plenilúnio me incendeia

sem que consiga virar-me em lobisomem

nessa defesa vã, antes que tomem

o que pensava poder chamar de meu

o mundo deu

para tirar

não vou ficar

neste lugar

CRUZES DE URTIGA X

depois de anos

de desenganos

manos a manos

bebi quimera

na luz plangente de cem pintassilgos

pensei que fosse meu próprio travesseiro

é apenas de sua fímbria que me abeiro

a meu redor tranço cordas de sol

uma corrente de ferro no arrebol

mas me derreto a cada grão de chuva

pevide e uva

sonho de cacho

sonho de macho

erguido o facho

CRUZES DE URTIGA XI

herdei dos pais

meus afinais

meus terminais

e meu começo

apenas tempo de memória peço

antes de ser consumido por peçonha

antes de ver a cova em que me ponha

de mãos cruzadas e pernas estendidas

sujeito à fome de baratas comedidas

reunidas para a sombra do banquete

estranha enquete

o que acharam

do que comeram

versos finais

CRUZES DE URTIGA XII

trago um bordel

no meu farnel

sonho de fel

e de lascívia pura

ainda voo nas asas do desejo

mudei assaz os sonhos de criança

a imaginação mais longe alcança

embora seja bem mais contristada

por tanta vez em que se viu frustrada

foi sua candeia o fogo de santelmo

fendido o elmo

tristeza infinda

combato ainda

na dor mais linda

CRUZES DE URTIGA XIII

já não espero

que o quero-quero

num lero-lero

sem mais sentido

qualquer instante tenha-me querido

transmitir uma só sombra de mensagem

é o vingador apenas de passagem

pouco se importa com o humano sonho

por mais que seu piar seja tristonho

não anuncia a morte e nem mais nada

pura piada

grito sincero

marcando mero

seu território

CRUZES DE URTIGA XIV

nos alambiques

há estranhos tiques

que não me indiques

mas sempre encontro

a cada vez escorrendo de meus dedos

os sonhos mais etílicos da glória

em prata e ouro um gole de vitória

assim ganhei pedra filosofal

a decretar quais sejam o bem e o mal

e absolutamente não me importo

se o mundo entorto

meu sonho aborto

e o globo acerto

num golpe incerto

CRUZES DE URTIGA XV

não sei se amo

ou se reclamo

ou se proclamo

meus caramujos

possuo um rio que corre para cima

blocos de gelo fervendo na panela

cascos se erguem da terra despojada

são as velas que impulsionam o meu vento

ponho as cidades no meu catavento

e o mundo inteiro dentro do embornal

cantil fatal

timão de ardor

galera crua

sem mar flutua

CRUZES DE URTIGA XVI

carrego a cruz

sobre os pés nus

só me reluz

baça coroa

eu não possuo o controle dos destinos

as parcas me contemplam de olho só

em sua cegueira correm sobre o pó

só têm um dente e só possuem um dedo

é muito fácil desvendar o seu segredo

eu fui à sua choupana e encompridei

atei três vidas

não mais cortadas

só consagradas

e as tornei minhas

CRUZES DE URTIGA XVII

ainda penso

quando estou tenso

usar meu lenço

de maragato

o parlamentarismo é extinto fato

de modo igual a nossa monarquia

que a atual constituição impediria

cláusula pétrea é o presidencialismo

como a república aceita com mutismo

que à ditadura chamem democracia

eucaristia

sem hóstia ou senso

vermelho denso

resta meu lenço

CRUZES DE URTIGA XVIII

a lua é o queijo

do meu desejo

lanço-lhe um beijo

só não acerto

um grande sonho plantei no meu deserto

mas houve inundação e tromba d’água

e descobri para minha grande mágoa

que a umidade assim desamparada

levou minha alma a ser desarraigada

ao invés de permitir que mais brotasse

tudo desfaz-se

a cada ensejo

e sempre vejo

que mais me aleijo

CRUZES DE URTIGA XIX

a minha lança

ainda alcança

ainda avança

sem descansar

procura ainda o universo conquistar

moinhos de vento vem requisitar

qual quixotada sem se ter moinhos

arbustos são gigantes mais mesquinhos

e cada vez que esfolo o integumento

engulo em seco meu tolo julgamento

mas me contento

feito criança

musgo esperança

que não me cansa

CRUZES DE URTIGA XX

no meu castelo

existe um belo

gato amarelo

porém sem rabo

também minha própria cauda foi cortada

nesses minutos após o nascimento

para conter meu antropoide sentimento

que sobre a copa das árvores faria

com que eu catasse o quanto mais queria

e fui agora forçado a andar em pé

e sei até

que se saltasse

talvez voasse

por pura fé

EPÍLOGO

talvez ainda

se for infinda

a vida linda

que eu aguardava

aos poucos desça entre as gotas dessa chuva

e me esbordoe o rosto em desatino

afinal, corre o sangue do destino

e me força a escrever em tom plangente

essas palavras de sabor bem diferente

do que em geral acredito ser poesia

mas eu queria

lúdica via

que a chuva fria

não me iludisse

só cantaria

mágoa arderia

se à luz do dia

não me apagasse

se tomasse todo o vento pelas rédeas,

penas de chuva no meu travesseiro

lençóis tecidos de corisco alvissareiro

de pedras de saraiva meu colchão

uma coberta de espuma de trovão

e sobre a morte sempre assim flutuasse

e então cantasse

nesse momento

em que apresento

meu julgamento