Fora da rotina
Deitei mais cedo, evitei as alienações da TV
Conversei com os criados-mudos, emudecidos
Ariei as panelas, troquei os botijões, limpei o bidê
E alimentei os pássaros, reguei os cravos, umedecidos
Terminados meus afazeres desforrei a cama
Tirei todo o encoberto, quis deitar, no seco
Não quis o prazer das cobertas, o gélido quarto
Deixei mesmo a porta aberta, e as janelas
Quem sabe uma brisa fagueira, as fagulhas
De uma qualquer fogueira, esquentassem
Meu rezar ritmado, minha prece velada
E a cômoda, timidamente marrom, farpas de mim
Ao meu lado, um copo d´água, uma vela
Esperança em cera, copos cheios de mim
Lacrimejavam as flamas, uivava o vento
Tornados lancinantes, acordavam meu sonhar
Não sei se era alma, penada ou depenada
Assombração hoje são águas passadas, sou voraz
Devoro a noite, o barulho do açoite, me encolho
E me gosto, me enrosco, gozo, sonhos meus
E lá fora tudo é silêncio, tudo é eminência
De som, de Sol, de mim, de momentos
A Lua já não lampeja, minh'alma já não
Se aquieta, o travesseiro não se sustenta
E agora eu era ninguém, refém, sem vintém
Ou mesmo alguém, me pagasse a fiança
Que me trouxesse na lembrança, transpirava
Memórias, elucubrações, delírios, realidades
Quem sabe foi a pequena fresta, ouço passos
É o rangir das madeiras velhas, são os meus passos
Chove lá fora, aqui tudo é primavera, é seresta
É festa, é festa, o Sol já vai raiar, noite estranha
Embolei na cama, acordei desgrenhada, tudo
Estava fora do lugar, cacos de vidro no chão
Vela ainda a tremular, coração acelerado,
Sonhei tanto que esqueci de me deitar
Gabriel Amorim 09/03/2014