Sonâmbulo
Enquanto as crianças ainda brincarem nas calçadas e desejarem crescer antes do tempo, o sonho ainda não terá acabado!
E se eu for procurar o que você me dizia para esquecer? E se aquela velha mentira se tornasse verdade? E se eu já encontrei onde os monstros realmente se escondem?
Nas noites escuras, úmidas, tão silenciosas teve início a dor de tudo começar a fazer sentido.
A insônia persiste. E depois de noites a fio, dormir tornou-se um luxo, um artigo para ser prescrito, encomendado e adquirido.
Não posso dormir. Não há mais ninguém aqui. Ninguém que me minta que tudo ficará bem, que foi apenas um pesadelo, que ficará pra me proteger, que sempre estará por perto para me afastar da solidão.
A ignorância foi um bem inestimável que perdi. Alguma coisa ficou no lugar, posso sentir aqui em meu peito, está vivo, inquieto, querendo sair e assumir o controle.
Essa mesma ignorância que protege, que afasta os males da frente de nossos olhos, que transforma a realidade dos jornais em entretenimento. Que nos deixa felizes ao ouvirmos falar em paixão, que permite que continuemos o mesmo caminho sem céu ou qualquer limite.
Faz o show continuar, virar copos envenenados, trocar dinheiro por um punhado de afagos, irmos ao encontro de nosso delator e sorrir, lhe revelar segredos, nos jogar em armadilhas e ainda saborear a traição.
Que nos consola em momentos difíceis, é nossa companhia ao vagarmos pelas ruas. Que nos ajuda a não se abalar, ignorar os erros, as falhas de caráter, a constante dor da mentira e ainda assim querer acreditar.
Me fazia virar madrugadas escrevendo uma carta, buscando me entender e achar que ainda estávamos vivos. A mentira que parece convicente, a sensação esquizofrênica de que estamos no lugar certo, com a pessoa certa.
É dessa ignorância que os seus lábios eram feitos, que não me deixavam ver que a porta estava fechada, que as suas pernas continuavam cruzadas, que a sua voz estava saindo afiada.
Essa ignorância que nos mantinha juntos, que tornou a nossa união possível, que nos fez dependentes do não saber e cegos a tudo que fosse verdade, acabou!
O vazio que ela deixou me fez despertar para nunca mais dormir. Me dei conta da falta dos seus abraços, que a sua vida tinha um sentido que eu não entendia, que os seus medos não me comoviam, que as suas palavras me cortavam como espinhos.
Que mesmo com as minhas lembranças, em nenhum momento eu estava ali, que a nossa despedida nada significaria, os seus punhos esmurraram para longe tudo o que eu lhe disse, até que no final apenas restara o silêncio em nossa sala.
Ipso facto.
E os argumentos não seriam mais importantes, a distância entre nós já era permanente. Apenas sobreviveu a verdade e memórias forjadas de coisas que nunca foram o que pareciam ser.