Sonho e Cidade

- Acorda amore!

- Estamos chegando.

Si carina... peguei no sono e tive um sonho bom.

Nossa, que perfume gostoso! Abra mais a janela.

- Comprei ontem...

Sim, eu sei, e teu admirável bom gosto é amplo...

Mas me referi ao sublime aroma das árvores, e estão floridas, veja, sinta!

Note aquelas pessoas na margem do rio, pescando com os filhos, até supera Seul!

Olhe o chapéu daquela senhora no boulevard, que elegância e distinção!

- Depois do evento no Theatro Municipal e do Cine Belas Artes, podemos ir ali...

Começo a observar o que é rotineiro, o retrato fidedigno da cidadania local.

Fluxo silencioso dos veículos elétricos, buzinas gentis, menos trânsito...

Pouquíssimos postes, quase não existem mais neles cabos e fios.

- Nada de tênis pendurados neles pelo cadarço, eram senha do tráfico...

Nem vejo mais as abundantes pipas com linhas, pareciam teias nos fios!

- Muito menos pedrinhas amarradas nas linhas com cerol!

- Sinto que a molecada tomou jeito, notei o bom movimento daquela ciclovia.

Aquela mulher comendo uma pera... até ouço a melodia da deliciosa mordida!

E as curvas dela, mistura de pera com violão, que coincidência!

- Sei... mas não ficarei com ciúmes, meu poeta tem minha licença.

Pois você é minha dama, convergência da minha vida, fruto amoroso.

- Parece que a educação melhorou e a estrutura familiar se revigorou

A tecnologia de ponta também vem sendo bem aproveitada por aqui.

Quantas placas de energia solar, veja querida!

- Sim, estivemos bastante tempo sem vir fazer turismo no Brasil.

- O povo daqui enfim está desfrutando do que temos lá...

- Non è uguale la nostra città, però, incantevole quello che ancora vedo.

Que lindos prédios com cobertura verde!

Parece que tem até uma horta sobre aquele lá.

- Consigo enxergar uns pássaros voando por entre eles.

Incrível, não vejo mais crianças pedintes paradas nos semáforos.

- Claro, observe aquele playground, está meio ocultado por árvores.

- Mas dá para ver um corre-corre bem divertido.

Lembrei-me das nossas infâncias.

Minha cidade natal está linda nesse período de Natal!

Parece que os interesses humanos estão mais elevados.

Dentro das pessoas e espalhados pela cidade...

Pela cidade...

Ci...dade...

de...

(...)

- Acorda amore!

- Estamos chegando.

- Dormiu bem, mio bello poeta?!

Si carina, peguei no sono e tive um sonho bom.

Abra a janela minha flor, preciso de um pouco de ar...

Deslize a cortina um pouco, a luz me despertará mais rápido.

- Nossa, que cheiro ruim!

Já chegamos a São Paulo... veja que judiação...

O cheiro é do Tietê, mas não só dele, há chaminés...

- Por Deus, não resolvem nunca a situação desse rio?!

- Veja quanto lixo boiando! Que nojo!

Não acredito que tudo isso seja a normalidade do dia a dia!

É uma afronta ao mundo civilizado, à raça humana, à herança de sabedoria.

- Isso já se tornou banal, normal. Anormal é enxergar o que vemos, e como vemos.

- Tudo bem, a sociedade inverte valores mesmo, mas isso extrapola!

- Estão ficando entorpecidos, anestesiados, paralisados e enlouquecidos.

A cidade está morrendo, pessoas estão morrendo, o rio já morreu!

Que barulho infernal, e quanta fumaça, está tudo cinza!

- Não adiantam pinturas nos prédios, as cores dos carros ou os luminosos.

O cinza implícito impregnou-se na retina, uma monocromia latente.

São milhões de tons de cinza, e a população só aumenta...

Escala de cinza, proporção do céu à terra, concreto por tudo.

Veja querida, note o semblante dessa gente, o que há com eles?!

- O homem ali da esquerda, fumando maconha à luz do dia, sem pudores.

Mas pode ser outra droga, vai saber... mas pela fumaça em si, coisa boa não é!

- Olha só a cara triste daquele garoto.

Acho que nunca deve ter jogado bola num campinho de terreno baldio.

Ele parece ter um IMC que representa a própria bola, não ria...

- E a saúde expressa-se sem a graça e o simbólico movimento dela...

Observe o descompasso daquela mocinha, com maquiagem carregada e roupinha chamativa.

- Você consegue distinguir se fará programa, ou se veio ou vai a um programa de lazer?

Pior seria se ela estiver indo trabalhar ou estudar...

Há o vazio saltando aos olhos, a angústia coletiva, a epopeia desvairada.

- Também notei... e a raiva na fisionomia do motorista? Quanto ódio!

Fiz leitura labial e nem posso reproduzir, o cavalheirismo dele desvaneceu.

- Estão em batalha interiorizada e atuando na guerra social sob leis de mercado.

É um fenômeno epidêmico, como a especulança e a maledicência.

- Há competitividade e estratégias mentais belicosas, uma pena...

- Estivemos bastante tempo sem vir fazer turismo no Brasil.

Mas não há como nos acostumarmos quando nos deparamos com isso.

- È diverso della nostra città, troppo brutte queste cose che ancora vedo.

Minha cidade natal está tenebrosa neste período de Natal!

Parece que os interesses humanos permanecem decaídos na cidade.

Os outdoors são ilusórios, até irônicos...

Mostram uma realidade consumista e... feliz!

- E o que vemos? Sem mais comentários não é mesmo querido...

- Nem tudo está perdido, a esperança sufocada resiste, sobrevive nas boas coisas.

Deu vontade de me aconchegar em ti e dormir novamente.

Quero retomar aquele meu sonho lindo!

Mas tenho uma ideia melhor, farei isso acordado mesmo!

- Então venha cá meu poeta, e me dê o beijo que tanto precisa!

Augusto Matos

Augusto Matos
Enviado por Augusto Matos em 07/10/2013
Reeditado em 07/10/2013
Código do texto: T4515030
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