Atropelamento
Eu traí as palavras.
Eu traí os sentidos.
Sinto-me absurdo.
Vivia regando o abstrato
Com sementes concretas.
E, na floresta imaginária
Troncos de árvores, folhas e rios
Esquadrinhavam a última primavera.
Os frutos maduros largados no chão
Apodreciam e aos poucos
Se eternizavam no caminho...
Velhos frutos trarão os novos.
Eu traí o sol com a lua.
Eu traí a lua com as estrelas.
Eu traí as estrelas com os sonhos.
E, em devaneios de amor e esperança
Conheci florestas, mares, infinitos...
Conheci prisões, catres e agonia.
Há beleza em tudo.
Tudo é inexoravelmente
belo e misterioso.
No transbordamento irresponsável
de amor
Na traição compulsiva
de amar e desamar
Nas frestas, nas gretas, nos nesgas de luz
E no enredo das promessas.
Corrompi teus sentidos
Com meu afeto
O embalei cuidadosamente com açúcar mascavo
Deixei tua língua conhecer-me
profundamente
E quando do abismo
Percebeste o lirismo intenso que nos rodeava.
A poesia vem e te atropela.
Aparecerá amanhã em letras gritantes
nas manchetes dos jornais:
Morto atropelado pela poesia
Bem ali na esquina do lirismo
com a saudade.
Restarão as míseras memórias.
Os escritos.
Registros e senhas.
As poucas fotografias não furtadas.
As que restaram...
O flash dos olhos do infante.
Do reluzir dos metais e das pedras.
Do branco pálido de teu sorriso.
A traição derradeira.
Ter amado, ter esquecido e nem
se lembrar vagamente
o porquê.
Desculpe-me.
Eu traí para sobreviver
ao abandono da estória.