Atropelamento

Eu traí as palavras.

Eu traí os sentidos.

Sinto-me absurdo.

Vivia regando o abstrato

Com sementes concretas.

E, na floresta imaginária

Troncos de árvores, folhas e rios

Esquadrinhavam a última primavera.

Os frutos maduros largados no chão

Apodreciam e aos poucos

Se eternizavam no caminho...

Velhos frutos trarão os novos.

Eu traí o sol com a lua.

Eu traí a lua com as estrelas.

Eu traí as estrelas com os sonhos.

E, em devaneios de amor e esperança

Conheci florestas, mares, infinitos...

Conheci prisões, catres e agonia.

Há beleza em tudo.

Tudo é inexoravelmente

belo e misterioso.

No transbordamento irresponsável

de amor

Na traição compulsiva

de amar e desamar

Nas frestas, nas gretas, nos nesgas de luz

E no enredo das promessas.

Corrompi teus sentidos

Com meu afeto

O embalei cuidadosamente com açúcar mascavo

Deixei tua língua conhecer-me

profundamente

E quando do abismo

Percebeste o lirismo intenso que nos rodeava.

A poesia vem e te atropela.

Aparecerá amanhã em letras gritantes

nas manchetes dos jornais:

Morto atropelado pela poesia

Bem ali na esquina do lirismo

com a saudade.

Restarão as míseras memórias.

Os escritos.

Registros e senhas.

As poucas fotografias não furtadas.

As que restaram...

O flash dos olhos do infante.

Do reluzir dos metais e das pedras.

Do branco pálido de teu sorriso.

A traição derradeira.

Ter amado, ter esquecido e nem

se lembrar vagamente

o porquê.

Desculpe-me.

Eu traí para sobreviver

ao abandono da estória.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 13/12/2012
Reeditado em 13/12/2012
Código do texto: T4033581
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.